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Saúde mental em tempos de Covid-19 em Roraima

Atualizado: 19 de mar. de 2021

Por: Marcos Joel Santos

(Foto - Reprodução: www.vidanatural.org.br/saude-mental/)

“Viver e não ter a vergonha de ser feliz...” a letra da canção do saudoso Gonzaguinha por muitos anos pareceu traduzir uma espécie de “espírito do brasileiro”. O povo alegre que não fugia da raia e encarava as dificuldades com otimismo continua a fazer parte do nosso imaginário. Mas, embora os estereótipos ainda permaneçam, a realidade que já vinha mudando, alterou-se drasticamente com a pandemia de Covid-19. Somos um país de ansiosos e deprimidos! Que convivem com o desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS) pelo governo Bolsonaro, e o abandono das políticas públicas de saúde mental.


Estudo recente da Organização Mundial da Saúde – OMS, reproduzido na revista Veja, aponta que, com mais de 16 milhões de doentes, o Brasil é o país mais deprimido e ansioso da América Latina. Mais de 10% da população com mais de 18 anos sofre com o problema, taxa bem acima da média global, de 4,4%. O país está no topo do ranking da depressão no continente, posição que ocupa desde 2017. Os índices brasileiros seguem na contramão da tendência mundial. Entre os anos de 2006 e 2015, por exemplo, a taxa de suicídios, evento associado à depressão, teve uma redução de 32% no mundo, enquanto o Brasil registrou aumento de 24% na sua população.


Arte - Reprodução - https://www.youtube.com/watch?v=FnsCSQwab-I)

1. O Que é Depressão.

De acordo com Aaron Beck e Brad Alford, autores do livro "Depressão, Causas e Tratamento", a doença é o quarto maior fator incapacitante das funções sociais e outras atividades da vida cotidiana. É responsável por cerca de 850 mil mortes a cada ano e afeta, aproximadamente, 121 milhões de pessoas no mundo. O diagnóstico do transtorno é realizado especialmente por meio de entrevistas clínicas que investigam a história de vida do paciente, seus principais sintomas, frequência e duração. A depressão configura-se como um estado de alterações do humor envolvendo irritabilidade, tristeza profunda, apatia, perda da capacidade de sentir prazer, além de alterações cognitivas e motoras. A doença difere de uma tristeza normal pela intensidade e duração prolongada dos sintomas.

O transtorno é definido pela presença de, no mínimo, cinco sintomas do chamado episódio depressivo maior por, pelo menos, duas semanas; um dos sintomas deve ser o humor deprimido, ou a perda do interesse ou prazer. De acordo com a Classificação Estatística Internacional de Doenças e problemas relacionados à saúde (CID-10), os episódios depressivos classificam-se em: (a) leve: quando o indivíduo ainda é capaz de realizar grande parte de suas atividades diárias; (b) moderado: quando o indivíduo começa a apresentar dificuldades no prosseguimento de sua vida cotidiana; e (c) grave: quando há intensos sentimentos de menos-valia, baixa autoestima e ideias suicidas.




2. A Ansiedade como problema cotidiano.

A ansiedade é uma reação esperada diante de situações de medo, dúvida ou expectativa. Nesses casos, funciona como um sinal que adapta a pessoa a enfrentar o desafio. O transtorno de ansiedade, porém, é um distúrbio caracterizado pela “preocupação excessiva”, persistente e relativamente incontrolável, que causa sofrimento, dificulta a adaptação, interfere na qualidade de vida, e vem acompanhado de outros sintomas, desproporcionais aos acontecimentos geradores, como inquietação, irritabilidade, fadiga, tensão muscular, dificuldade de sono e concentração, e perduram por, pelo menos seis meses, de acordo com o Manual de Classificação de Doenças Mentais (DSM -V) da Associação Americana de Psiquiatria. Os sintomas são comuns a várias condições clinicas e exigem tratamento específico.

Dentre os distúrbios de ansiedade encontram-se o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), associado a rituais compulsivos e ideias obsessivas; a fobia social, caracterizada pelo medo intenso de algo que não existe, ou não representa perigo; a síndrome do pânico, desencadeada por fatores diversos, sem motivos aparentes; e o transtorno de estresse pós-traumático, relacionado a lembranças de atos violentos, ou situações traumáticas, que, em geral, representaram ameaça à vida da própria pessoa, ou à de terceiros.


3. Depressão e Ansiedade em Tempos de Pandemia.

A pandemia do novo coronavírus mudou a rotina e os hábitos das pessoas em todo o mundo. Especialistas recomendaram a quarentena como principal forma de impedir a disseminação do vírus. As medidas, necessárias no âmbito da saúde pública, tiveram impacto social, econômico e na saúde mental das pessoas. Dentre os problemas, os mais comuns foram a depressão e a ansiedade, como apontou estudo do professor Alberto Filgueiras, do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e o médico roraimense Gustavo Guerra*, na linha de frente do combate à Covid-19.

Os resultados do estudo paulista demonstram que os casos de depressão dobraram entre os brasileiros, durante a quarentena. Enquanto o depoimento do doutor Gustavo, aponta para o desenvolvimento de sintomas de ansiedade, inclusive entre os profissionais de saúde, mesmo em quem não desenvolveu a doença. “Essa doença é um gatilho para vários transtornos psicológicos e psiquiátricos, não necessariamente relacionadas ao ato de adoecer, nem ao fato de perder entes queridos. Alguns pacientes, mesmo, não entram mais no quarto onde ficaram doentes em casa. Um até hoje usa ansiolítico, se curou tem uns seis meses, para você ter uma ideia do transtorno psicológico que ele desenvolveu, como se não bastasse mas alterações neurológicas, renais e respiratórias”.


O isolamento social, as mudanças da rotina habitual, notícias informando o aumento do número de mortes, infectados na família e a ausência de leitos nos hospitais são capazes de gerar ansiedade, estresse e sintomas de depressão entre as pessoas, pontua a psicóloga Cláudia Rocha. Tais situações, encaradas pelo cérebro como ameaça, aliadas ao medo constante quanto à contaminação e a perda do poder aquisitivo, funcionam como estímulos para o desencadeamento da ansiedade e de eventos depressivos.


A terapeuta afirma que a depressão e a ansiedade não têm uma causa isolada, “há fatores de risco que aumentam a sua probabilidade”. Dentre estes podem ser elencados fatores genéticos e fisiológicos (pessoas com familiares depressivos, por exemplo, têm maior risco de desenvolver a doença); situações traumáticas na infância; eventos excessivamente prolongados e estressores; mudanças drásticas na rotina, como o isolamento social promovido pela pandemia; convivência com doenças crônicas; desequilíbrio dos neurotransmissores no cérebro; perdas financeiras ou de familiares; e doenças psiquiátricas pré-existentes.

Além disso, dificuldades oriundas da pandemia podem trazer à tona problemas psicológicos antigos, para os quais a pessoa não dava muita importância, a exemplo da falta de habilidades sociais para lidar com relacionamentos afetivos. O isolamento social, por exemplo, fez com que muitos casais passassem a conviver por mais tempo, abrindo espaço para desentendimentos, discussões, e o fim de muitos relacionamentos, amplificando ainda mais o cenário da ansiedade, do sofrimento psíquico, e da depressão.


No entanto, nem todos os problemas psicológicos podem ser qualificados como doença. “É normal se sentir triste ou desanimado de vez em quando, especialmente neste momento difícil da segunda onda da pandemia, com novos recordes de mortes todos os dias”, complementou a terapeuta. Porém, quando o grau de sofrimento, de tristeza e de desânimo começa a se sobressair a outros sentimentos, perdurando por mais tempo, interferindo em áreas significativas da vida, como o trabalho, amizades e relacionamentos afetivos, é hora de pedir ajuda.


4. Como Pedir Ajuda Contra a Ansiedade e a Depressão durante a pandemia em Roraima.

Em relação à saúde psíquica, “infelizmente ainda existe muita dificuldade de acesso a ajuda especializada na rede pública em Roraima”, afirma a psicóloga Glenda Dinelly. O preconceito quanto às doenças mentais ainda é grande, especialmente doenças silenciosas como a depressão. “Além disso, o cuidado com a saúde mental, psiquiatras, psicólogos, ainda é uma prestação de serviço elitizada e para poucos.”

O médico Gustavo Guerra atribui parte dessas dificuldades à corrupção: “o sistema de saúde de Roraima é um sistema combalido, é um sistema fraco, é um sistema vítima da corrupção de vários e vários anos, então para qualquer que fosse a doença, ou epidêmica ou pandêmica, o sistema ia sofrer, e a população consequentemente”. De acordo com ele, embora a doença, estatisticamente, não tenha uma mortalidade muito agressiva, tem o poder de levar muita gente ao mesmo tempo para o hospital, daí o hospital não suporta. O que, por sua vez, vai repercutir nas outras áreas do cuidado, como o psicológico, por exemplo.


O apoio comunitário, e uma rede de cuidados eficiente, estão entre os fatores que minimizariam os efeitos da ansiedade e da depressão no estado de Roraima. Uma rede de atenção à saúde mental funcionando, em conjunto com medidas de prevenção adequadas, como o distanciamento físico, o uso de máscaras de proteção, do álcool em gel, e ignorar conselhos de lideranças políticas que atuam contra as orientações da OMS, contribuirão para a melhoria do quadro da saúde no estado, aponta o médico.



O servidor público, Plácido Vital, teve múltiplos problemas com a Covid-19 em Roraima: “Eu também tive como sequela um déficit cognitivo. Eu já era um pouco esquecido, aí agora o nível de atenção caiu muito mais, e o esquecimento pior ainda.” O servidor destacou ainda, a importância do tratamento humanizado que recebeu no hospital público, no bloco C do Hospital Geral de Roraima - HGR: “Diferentemente do que acontece com a população, na Ala que eu fiquei, o tratamento foi VIP. Melhor do que qualquer hospital particular, sem custo nenhum, com uma assistência espetacular. Eu sei que próximo de lá o clima era diferente, era clima de guerra, mas aonde eu estava era diferente. Então, eu tenho só que elogiar.”


Em Roraima, dois serviços de saúde, ainda relativamente desconhecidos da maioria da população, se notabilizam por oferecerem apoio a pessoas com transtornos psicológicos, o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) e o CVV (Centro de Valorização da Vida). O primeiro, criado pelo governo federal em legislaturas anteriores, é disponibilizado pelo SUS para auxiliar exclusivamente pacientes que sofrem de transtornos mentais, dependência química ou outras patologias psiquiátricas. O serviço substituiu os antigos internamentos manicomiais, e visa oferecer tratamento mais humanizado a quem precisa.


Para receber atendimento no CAPS o paciente pode procurar uma unidade espontaneamente, ser encaminhado por alguma outra instituição, ou pelo Programa de Saúde da Família. Na unidade será avaliado por um plantonista e direcionado para um Terapeuta de Referência, que ficará responsável por acompanhar o caso e realizar o Projeto Terapêutico Singular (PTS), atividades, oficinas terapêuticas e terapias adaptadas à realidade do paciente.


Já o CVV é uma organização não governamental - ONG, criada há 58 anos, com o intuito de prestar apoio emocional e prevenção ao suicídio de maneira gratuita à população, está presente em todo o país e atende por diferentes canais, como chat e e-mail, 24 horas por dia, sete dias por semana. Entretanto, o canal mais conhecido é o número 188. Só entre maio e julho de 2020, de acordo com informações disponíveis no site da Assembleia Legislativa do Estado, parceiro da instituição, o telefone recebeu mais de 900 ligações de Roraima, 240 a mais do que no mesmo período do ano passado. O aumento da demanda está diretamente relacionado aos efeitos da pandemia.


Apesar das iniciativas exitosas, ainda existe um longo trabalho a ser feito, avalia a psicóloga Glenda Dinelly. Politicas públicas de atenção à saúde mental, uma rede mais eficiente (especialmente em localidades menores e mais vulneráveis socialmente), trabalhar a prevenção, capacitar pessoas, contratar e valorizar profissionais especializados para o atendimento e tratamento adequado durante e após a pandemia, são algumas das medidas a serem implantadas para eliminar as fragilidades na rede de atenção psicossocial. Dentre outros desafios, o SUS deve ser defendido, bem como as políticas públicas humanizadas. “Saúde mental deve ser uma prioridade!”, concluiu.


* A pedido, a fonte teve seu nome alterado e seu local de trabalho suprimido. Entrevista concedida sob garantia do anonimato da fonte e de seu local de trabalho. A fonte teve o seu nome alterado a pedido.


PARA SABER MAIS:

CID - 10 - Classificação dos Transtornos Mentais e do Comportamento: Descrições Clínicas e Diretrizes Diagnósticas – Organização Mundial de Saúde, Porto Alegre: Artmed, 1993.

HOLMES, D. S. Psicologia dos transtornos mentais. 2ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

DSM V –Critérios Diagnósticos do DSM V: Referência Rápida, 2ª edição, Porto Alegre: Artmed, 2012.


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