Município diz que o espaço está dentro das normas, mas especialista explica que chamar unidade atual de “aterro sanitário” é errado
Por Ana Karoliny de Holanda, Eduardo Garcia e João Gabriel Leitão*
Segundo o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares), todos os municípios devem encerrar as atividades de seus lixões e “aterros controlados” até a segunda metade deste ano. Mas, às margens da BR-174, no chamado Aterro Sanitário de Boa Vista, o que se vê são caçambas que entram e saem do local, que segue em pleno funcionamento.
Lotados de resíduos, os caminhões dividem a paisagem com os urubus, que parecem saber quando um dos veículos está prestes a despejar o lixo na “montanha” que cresce há mais de 20 anos.
Vista aérea do aterro de Boa Vista mostra BR-174, paisagem verde ao redor e o bairro Pérola do Rio Branco, que fica a pouco mais de 1km do local (Vídeo: Ronny Alcântara)
Instituída por lei em 2010, a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), determinou que nenhuma cidade tivesse lixão a céu aberto até 2014. Mas, após uma série de prorrogações, a meta se estendeu até 2022. Agora, com o Planares, implementado pelo Decreto Nº 11.043 do mesmo ano, os municípios têm até agosto de 2024 para acabar de vez com locais de descarte inadequado de resíduos sólidos.
Nossa equipe de reportagem esteve nos arredores do local. A caminho do aterro de Boa Vista, não é difícil se ver atrás de caçambas com galhadas e outros materiais descartados. Elas chegam pela BR-174 e, ao entrar na unidade, dividem espaço com outras que despejam os resíduos na área e com um trator, que empurra o material ao mesmo tempo que compacta o terreno.
Para quem pretende passar alguns minutos no entorno do aterro, recomenda-se o uso de repelentes, devido ao alto número de mosquitos. A paisagem é tomada pelas nuvens de urubus que voam por ali e se dirigem até o topo das pilhas de lixo quando as caçambas chegam.
Enquanto a reportagem esteve na unidade, não foram avistados catadores nas dependências do aterro, entretanto, o local ficou conhecido no passado por abrigar famílias inteiras que coletavam lixo, tanto para vender, como para se alimentar. Veja como é o dia a dia das operações:
A todo momento, caçambas com lixo entram e saem do aterro de Boa Vista (Vídeo: Ronny Alcântara)
“Aterro controlado”
É errado chamar a unidade de manejo de resíduos sólidos de Boa Vista de “aterro sanitário”. O local, que ficou conhecido como um lixão a céu aberto, por não ter tratamento adequado do chorume, na verdade, se enquadra na categoria de “aterro controlado”, como explica o engenheiro sanitarista Rogério Martins.
“O aterro controlado só controla a parte superior. Se a gente observar lá, estão colocando os resíduos e cobrindo com terra ou argila, ou seja, estão compactando esse material, porém, na parte de baixo, não estão fazendo como deveriam fazer ", esclarece o especialista.
O termo “aterro controlado” é utilizado para dar nome a locais que recebem apenas cobertura diária do montante de lixo. Nesses lugares, portanto, os resíduos são descartados de forma irregular, sem passar por controle de contaminação ou tratamento adequado, como ocorre nos aterros sanitários.
Nesse tipo de unidade, não há também o controle e tratamento do chorume e dos gases liberados pela decomposição dos resíduos, gerando impactos ambientais invisíveis.
“É preciso colocar uma manta e drenar o solo, para quando ocorrer a decomposição da matéria orgânica e a produção do chorume, que é um líquido altamente contaminante, ele seja levado a uma estação de tratamento, para só então retornar à natureza”, explica Rogério. “No aterro de Boa Vista, boa parte do chorume ainda está infiltrando no solo, podendo adentrar o lençol freático ou um igarapé da região”.
A poucos metros da entrada do aterro de Boa Vista existe uma ponte. Ao lado, uma placa que diz: “Ponte sobre o Igarapé Wai Grande”. Ao fundo, a montanha de lixo completa a paisagem. Os impactos ambientais do aterro no corpo d’água, que deságua no Rio Branco, foram estudados neste artigo da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Os chamados “aterros controlados” e os lixões a céu aberto descumprem o Novo Marco Legal do Saneamento. Com os fechamentos das unidades de Cuiabá (MT) e Porto Velho (RO), Boa Vista seria a única capital a descartar lixo em aterros do tipo.
Baixa adesão à Política Nacional de Resíduos Sólidos
Boa Vista possui ainda baixa adesão às diretrizes da PNRS, segundo o Índice de Sustentabilidade e Limpeza Urbana (Islu), uma das principais ferramentas para medir o grau de aderência dos municípios às diretrizes da norma.
Publicado em 2023 pela Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema) junto à PricewaterhouseCoopers (Pwc), com dados públicos do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis), a capital somou apenas 0,527 no índice, o que configura baixa adesão (até 0,599). A escala varia de 0 a 1 e quanto mais perto de 1, maior é a aderência da cidade ao PNRS.
Para o cálculo, são levados em consideração, o engajamento do município no manejo adequado dos resíduos sólidos, a sustentabilidade financeira da cobrança para prestação de serviços, o nível de recuperação (reciclagem) dos materiais coletados e o impacto ambiental dos locais de descarte inadequado.
Boa Vista possui um um dos menores valores na “dimensão R”, que mede a reciclagem e recuperação dos materiais, entre todas as capitais do Brasil, com 0,162.
Atrás apenas de Santarém (PA), Marabá (PA), Porto Velho (RO) e Manaus (AM), a capital roraimense ainda tem o quinto pior índice entre as cidades do Norte. A região, por sua vez, tem o segundo mais baixo nível de adesão ao PNRS (0,378) - com a pior destinação correta (12,2%) e apenas 1,2% de material reciclado.
Apesar da baixa adesão, o Islu calculou que Boa Vista apresentou alta no índice, indo de 0,428 em 2021, para 0,443 em 2022, índices que configuram muito baixa adesão à PNRS.
Promessa antiga
A gestão do aterro de Boa Vista fica a cargo da Secretaria Municipal de Serviços Públicos e Meio Ambiente. Antes mesmo de assumir o cargo, em entrevista à Folha de Boa Vista, o prefeito Arthur Henrique (MDB) afirmou que a construção de um novo aterro e o encerramento do atual já constava no Plano Municipal de Gestão dos Resíduos Sólidos.
À época, ele alegou também que o projeto do novo aterro — que seria construído próximo à unidade atual — já estava pronto e prestes a ser licitado, mas isso nunca aconteceu.
Sobre a transição para uma nova unidade, o especialista Rogério Martins explica que só é possível encerrar as atividades de um aterro quando outro local para manejo dos resíduos é concluído e fica pronto para receber o material descartado.
“Não adianta falar que está encerrado aquele e jogar os resíduos em uma outra área sem o (novo) aterro construído. Não sei se eles vão conseguir encerrar até o fim do ano como diz a lei, mas para que encerre, é preciso ter um aterro sanitário em operação”, reforça o engenheiro sanitarista.
O que diz a prefeitura
Questionada pelo Amazoom sobre o encerramento das atividades no atual aterro, onde não há manejo adequado dos resíduos sólidos, a prefeitura informou que a unidade “passou por várias adequações nos últimos anos e atualmente pode ser considerada um aterro sanitário, pois atende às normas ambientais vigentes”. Não foram apresentados estudos para comprovar isso.
Sobre as evidências de que um novo aterro, adequado às diretrizes das leis vigentes, esteja sendo construído, a secretaria responsável informou que a nova unidade “está em fase de estudos, pois um empreendimento deste porte necessita de vários projetos, tanto ambientais quanto de engenharia, para que não haja risco à saúde pública e ao meio ambiente”.
A pasta alegou ainda que a área de instalação, os prazos de entrega da obra e início das atividades de um novo aterro só serão definidos após a conclusão dos tais estudos.
Conscientização
A responsabilidade em relação ao descarte e manejo adequado dos resíduos sólidos é compartilhada, segundo a PNRS. É dever dos governos, da iniciativa privada e da população dar destino adequado aos materiais descartados.
Para que as normas e diretrizes funcionem, é preciso que todos os atores participem na execução de políticas sobre o tema e, mais importante, que o poder público ofereça condições para que as ações saiam do papel.
*Conteúdo produzido no escopo da disciplina JOR51 – Webjornalismo.
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