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Crise venezuelana: o consulado, a Rússia e a livraria

Por: Pedro Barbosa e Shigeaki Alves


Fazer uma grande reportagem não é um trabalho de poucos dias. É preciso tempo e segurança de tudo que foi apurado, para assim as informações serem divulgadas de forma gradativa.

Em alguns casos, pautas podem cair, pessoas podem se perder e informações que pareciam importantes podem ser desmentidas. Por isso, nem sempre o projeto ganha sua capacidade total.

Entretanto, parte do desafio proposto para que uma grande reportagem seja feita é o improviso. Às vezes se é cobrado algo que está além da alçada de recursos disponíveis, mas um jornalista não deve tratar isso como desculpa para não divulgar o que descobriu, nem que seja com um flerte de jornalismo gonzo.

Por isso, essa é uma reportagem delirante, que não foi feita para ser conclusiva, mas sim apresentar pontos de vista que façam o leitor refletir aquilo que ele já conhece sobre um assunto: a crise migratória venezuelana.

As várias formas de nos informarmos que existem na atualidade proporcionam uma suposta abrangência de pontos de vista quanto aos impactos da crise econômica venezuelana, e seus impactos em países como Brasil e Colômbia. 

Essa abrangência implica enxergar perspectivas que possam parecer invisíveis em noticiários expressos, ou seja, aqueles que vivem em função do fato em si, e possuem um compromisso de dar desdobramentos de fatos em primeira mão, e suas subsequentes consequências sociais.

As visões que não são expostas nessas matérias, por não representarem um novo fato de impacto social, acabam sendo ignoradas na formação de opinião de grandes massas, que sempre irão buscar informações e visões de fácil compreensão e dissertação.

Mas o que essas perspectivas podem dizer? Nos casos aqui selecionados, as falas expressam indignação com possíveis intervenção internacional na Venezuela, a frustração de uma aliança e o amor que supera qualquer tipo de raiva com um país ou mais.  O primeiro relato, é de um evento, uma ocasião feita para versões bem diferentes do que os noticiários podem apontar.

Crise ou manipulação midiática?


Foto: Shigeaki Alves

“Não temos recursos para garantir 100% da alimentação na Venezuela. É natural que em casos de dificuldades econômicas em um país, as pessoas migrem para os vizinhos. Entretanto, por causa da manipulação midiática retratando as pessoas com fome, falando de uma crise sem compreensão dela, faz com que o governo venezuelano seja mal visto internacionalmente, como se fossemos contrários ao nosso próprio povo, gerando esses atritos diplomáticos”

Esta é a fala do vice cônsul geral da Venezuela, Alexander Ianz, no evento “As verdades sobre a Venezuela: O que realmente está acontecendo no país?”, realizado na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), no dia 25 de abril deste ano.


Foto: Shigeaki Alves

A fala pode soar impactante, e a ideia é justamente essa na ocasião. A proposta da palestra é mostrar um ‘outro lado’ para a crise migratória venezuelana, colocando os meios de comunicação como agentes que contribuem para que haja incentivo a guerra civil ou interventoria.

Além de Alexander, professores da UFAM, como Everaldo Fernandez, de Direito, Luiz Antonio Nascimento, de Ciências Sociais e o diretor do Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais, Raimundo Nonato Pereira da Silva, participaram do evento.

O professor Everaldo ressaltou a fala de Alexander, comparando a atual tensão diplomática da Venezuela com situações de guerras pós-anos 90, incentivados pela suspeita da falta de democracia em um país.

“Normalmente, existem dois aspectos que são denominados exceções para que haja uma intervenção política dentro de um país: a garantia da paz internacional e a garantia da segurança internacional. Nessa análise de exceções, a partir dos anos 90, com a diluição do antigo bloco soviético, começou a surgir com ousadia o argumento de que a democracia é fundamental para a paz. Com isso, seria justo intervir para restaurar a democracia. Só que não existe no direito internacional uma sinalização de tais perigos na Venezuela”, pontuou.


Foto: Shigeaki Alves

O vice cônsul reforça seu argumento explicando políticas socias trabalhadas pelo governo venezuelano mesmo em tempos de crise.

“Nós trabalhamos com políticas sociais na medida do possível para garantir o bem-estar dos cidadãos independente da crise ou sanções que estejam ocorrendo. Esse é o caso, por exemplo, do programa ‘De volta à pátria’, que trabalha com o retorno dos imigrantes que não conseguiram condições de sobrevivência no Brasil. Além disso, ainda garantimos a moradia para essas pessoas, são quase três milhões e meio de casas para pessoas em condições de rua, coisa que outros países não proporcionam”

Por fim, ele salientou que os imigrantes saídos do país não deixam a nação por rejeição à Pátria. É uma mera questão de sobrevivência, em um país que enfrenta tempos incompreendidos pelo mundo.

“É importante salientar, na fronteira com a Colômbia mesmo, 35 mil pessoas ultrapassam a fronteira para lá, por dia. Mas os meios de comunicação não dizem que 98% dessas pessoas voltam para o país, com suprimentos. Elas estão sentindo falta de comida, mas não querem sair do país”.

Os pontos abalam, por tão esquecidos que são na discussão geral da crise venezuelana. O medo venezuelano da intervenção internacional com protagonismo norte americano sempre foi exposto e demonstrado, principalmente, por meio da principal aliança venezuelana chavista: a Rússia.

Anatoly e a perda do apoio russo

A potência russa continua sendo a principal base do mantimento de poder, e isso foi demonstrado em 2019 de diversas formas, como a exibição de caças em aeroportos venezuelanos e negócios vitalícios envolvendo armamento geral.

Entretanto, como aponta o repórter Anatoly Kurmanaev, correspondente do jornal New York Times na Rússia, até mesmo tal relação, que continua sendo importante para o mantimento de Nicolás Maduro no poder em meio à oposição do autoproclamado presidente e presidente do parlamento venezuelano, Juan Guaidó, está passando por uma crise fruto d queda econômico do atual status quo.


presidente Putin, à direita, apoiou Nicolás Maduro, mas as companhias russas recuaram. Foto: Maxim Shemetov/Reuters

Como o repórter informa, com uso de fontes anônimas, a Rússia já não vê mais vantagens no investimento na Venezuela, uma vez que o país está a beira de um colapso econômico, e o próprio governo russo já enfrenta uma estagnação econômica de cinco anos, o que indica que já não há mais tantas condições para tais empreitadas armamentistas em países com ideologias antagônicas aos Estados Unidos.

“Os maiores bancos de Moscou têm rejeitado em grande parte as tentativas de Maduro de transferir as contas do governo venezuelano para a Rússia a fim de escapar das sanções americanas, segundo duas pessoas que pediram para não ser identificadas. O emprego do dólar, em geral, no sistema financeiro russo implica que o risco de sanções americanas ultrapassa consideravelmente os ganhos potenciais de novos acordos venezuelanos, elas (fontes da reportagem) afirmaram”, afirma trecho da matéria.

O desgaste dos laços econômicos com a Rússia, somado com as sanções americanas impostas ao país, reflete na própria fome passada pela população. Um exemplo disso é a citação de que as vendas de trigo russo à Venezuela despencaram 60% no último ano, com somente 170 mil toneladas. Essa quantidade, de acordo com a reportagem, só poderá cobrir um décimo da demanda de trigo do país.

Como o cenário indica, um apoio futuro da Rússia é incerto, e pode ser interrompido de forma brusca na primeira oportunidade.

Toda a loucura ideológica que existe nas cabeças e atos ligados à política venezuelana poderiam ser a única coisa que pode ser vista nesse cenário. Mas não podemos ignorar outro ponto de vista: daqueles que usam o amor que sentem por algo para ultrapassar obstáculos.

A livraria itinerante de José Benites


Foto: Pedro Barbosa

- Este é Miguel Otero Silva, que foi um grande jornalista venezuelano, um dos mais reconhecidos da história do país. Temos várias obras dele por aqui. Eu já li alguns de seus trabalhos. Ele era bastante crítico, foi jornalista e político, e fazia análises aprofundadas sobre a história venezuelana. Eu te recomendaria um trabalho dele. - conta o vendedor de livros José Benites, de 32 anos.

Ele continua pegando mais livros, mostrando os diferentes conteúdos que cada um proporciona. O vendedor parece animado em falar de cada um deles, gesticulando e pegando-os um por um, até que haja uma pilha deles na sua mão - Este aqui foi impresso na Espanha, é de aulas de teatros e técnicas de comunicação para cinema e televisão -

José é um imigrante venezuelano, mora em Boa Vista há dois anos, e trabalha com venda de livros dentro da Universidade Federal de Roraima (UFRR), em uma espécie de livraria itinerante, que atualmente está alocada no Bloco 1 da instituição.


Foto: Pedro Barbosa

Diferente de outras livrarias, a de José vende livros de diversos países latino-americanos e Espanha, muitas vezes raros ou de edições limitadas. O vendedor explica que é formado em Literatura no seu país, mora em Roraima com sua esposa, e viu nos livros a oportunidade de melhorar de vida. 

Vínhamos muito para cá ver conferências, e com isso acabei me familiarizando com alguns professores, e acabava dando livros de presente para eles. Como as condições ficaram difíceis na Venezuela, e estava sem emprego, vim para cá. Eu não tinha como me sustentar aqui, então surgiu a ideia de vender livros da Venezuela.

De postura ereta, com os braços para trás de suas costas, o vendedor conta que este não é um trabalho que ele faz sozinho. Ele tem a ajuda do professor universitário e pesquisador Juan Garcia, que dá aula em diversas comarcas da Universidad Pedagógica Libertadora, em unidades espalhadas pela Venezuela.


Foto: Pedro Barbosa

Toda vez que venho para cá, venho com livros novos que consigo em diversas partes da Venezuela. Em Caracas e Valência, por exemplo, existem muitas feirinhas, na rua mesmo, de vendas de livros velhos, novos, usados, não importa… Também existem aqueles que doam para nós.

Juan explica que os livros que param nas vendas de rua vêm de vários países, com os mais notórios sendo México, Cuba e Espanha. No meio de tantos produtos em espanhol, é possível encontrar até mesmo livros em português, além de algumas revistas de história brasileiras.

O professor tem 67 anos, e dá aula há 40. Ele olha com cuidado para cada livro, para ter certeza que todos estão em bom estado para a venda. Além disso, vê o pequeno negócio com entusiasmo, e ajuda José nas vendas quando está por perto. Assim como Juan, José acredita que livros devem ser passados adiante após serem lidos.


Foto: Pedro Barbosa

Eu venho para cá de vez em quando, pois sou professor na Venezuela. Geralmente, com grupos de pesquisa ou turmas em expedições. Sempre que posso vir para cá, entrego-os ao José.

O vendedor continua a organizar e revirar livros de seu estoque. Enquanto faz isso, ele fala que já não tem mais livros que possam ser chamados de seus, e, no fim das contas, não vê mais sentido em ter tal tipo de posse.

Eu e o professor não temos apego material à eles, pois acreditamos que depois que você termina de ler, o conhecimento já está contigo, e então só resta passá-los adiante. - contou José, enquanto organizava os livros literários, colocando Fausto de volta ao local de onde havia sido retirado por um cliente curioso.

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