“Estou dormindo, sonhando com BY, acordo assustado, coloco as mãos na rede ao lado e cadê meu filho? ” Essa é a fala de Oma Yanomami, chorando de angústia por ter seu filho institucionalizado em virtude da falência do sistema de proteção do Estado brasileiro em relação aos povos indígenas, especificamente aos grupos étnicos milenares como são os povos que moram na TI sob ataque de garimpeiros, grileiros, madeireiros e do crime organizado.
BY é originário da comunidade Korasi-pitheri, localizada no sudeste do território demarcado em 1992 pelo governo brasileiro, mas que sofre com ataques especulativos do nosso sistema produtivo, seja com a grilagem de terras, o garimpo ilegal, corte de madeiras, recentemente com a estruturação de logísticas por organizações criminosas ligadas ao tráfico internacional de armas, drogas e pessoas que se estabeleceram dentro da área dos povos da TI Yanomami.
A criança hoje com 4 anos foi removida com malária, no ano de 2022, pelo DSEI-Yanomami e Ye'kuana que enfrentava, neste período, uma das piores crises do subsistema de saúde, especialmente na casa de apoio à saúde indígena (CASAI), vinculada ao distrito. A família foi alojada neste espaço de apoio relacional com a rede secundária e terciária do SUS, existente em Boa Vista. No entanto, conflitos fizeram com que Oma e Bonita Yanomami fugissem da CASAI, quadro que piorou as condições de saúde de seu filho BY.
Oma Yanomami é pai de 8 crianças e adolescentes que vivem com ele. É uma liderança indígena na região do Catrimani, onde já atuou como professor e agente indígena de saúde, sendo hoje Xapori (médico/pajé na cultura Yanomami). A família foi removida entre agosto e setembro de 2022 da UBS localizada na Missão Catrimani, com seu filho BY que apresentava sintomas de malária, doença que com o garimpo aumentou muito, na medida que os serviços foram sendo desfinanciados no governo anterior. Hoje, seu filho encontra-se no abrigo Viva Criança, sem o consentimento da família.
BY foi Internado no HCSA - unidade hospitalar administrada pela prefeitura municipal de Boa Vista - em 23/09/2022, sendo diagnosticado com uma neuropatia, malária, problemas respiratórios e bucais. Logo após a internação a família foi impedida de ver o rebento. O motivo deste ato desumano viria a ser esclarecido pela rede de proteção aos Yanomamis em situação de rua, ao descobrir que no registro de entrada, no HCSA, haviam colocado que BY era indigente. Não tinha pai e nem mãe, essa é a informação que consta em um dos documentos da unidade hospitalar, datado de 13/12/2022. Ocorre que os genitores de BY estavam vivendo nas ruas de Boa Vista sob chuva, sol, fome e todas as agruras que impactam pessoas desassistidas pelo Estado, aguardando a alta do filho e o direito de vê-lo.
A situação desumana de exclusão parental na unidade hospitalar foi contornada com o apoio da rede de proteção, possibilitando ao Xapori Oma realizar um pequeno ritual de cura com seu filho. BY agora usa uma sonda nasogástrica para alimentação, em virtude de sequelas não explicadas pela unidade hospitalar. Bonita, ao ver seu filho em novembro de 2022, 2 meses após sua internação, estranha não poder amamentar e colocar a criança no colo. Chora sem entender aqueles tubos e fios ligados ao corpo do pequeno guerreiro que luta pela vida.
A condição de rua da família amplia a vulnerabilidade do casal, majorada pelo processo de desestruturação familiar e as constantes cobranças de Bonita Yanomami, ao seu companheiro, para que lhe entregue seu filho. “Eu quero meu filho. Não saio daqui sem meu filho. Você não é mais forte”, afirma ela. Na cultura Yanomami, o homem possui responsabilidades sociais a serem cumpridas diariamente, na cidade, essas funções são usurpadas pela condicionante da ausência objetiva da liberdade decisória. Aqui, as instituições fazem suas regras, ou mesmo, omitem-se em cumprir suas funções, além de extrapolarem suas obrigações como ocorre no caso de BY.
A volta para casa
No dia 31/03/2023, Oma e Bonita Yanomami são convencidos pela rede de proteção aos Yanomamis em situação de rua a retornarem à comunidade, apesar da recusa da mãe em embarcar sem o filho. A esperança de alta da criança expressa na posição da Hutukara – organização representativa dos Yanomamis – que se pronunciou junto ao juizado da infância e juventude, afirmando que a segurança da criança se encontrava junto a sua família, como preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), foi um dos motivos que convenceram a mãe de BY, retornar à comunidade e aguardar a chegada de seu filho.
Entre a saída da CASAI e o retorno para TI, da família Yanomami, foram 6 meses vivendo nas ruas de Boa Vista. A situação de vulnerabilidade imposta pela ausência de uma política de cuidado, do estado brasileiro, fez com que a dor se transformasse em uma rotina de sobrevivência, muitas vezes, o consumo de bebida é o único porto seguro à vista. A situação não foi pior em virtude de a rede de proteção conseguir fornecer no mínimo uma refeição diária, não apenas a Oma e Bonita, mas a todos os familiares que vieram à sua procura na cidade.
Neste período, Bonita Yanomami viu sua irmã Rosilma Yanomami morrer, assumindo ela a responsabilidade sobre os jovens Edmar Yanomami e NU. Davida Yanomami a exemplo de Rosilma também morreu atropelada nas ruas de Boa Vista, ela também parente de Bonita. Outra morte que abalou muito o casal foi o assassinato de Ana Yanomami, na feira do produtor, em 11/11/2022. Os atropelamentos e outras violências marcam a vivência dos grupos Yanomami nas ruas da capital roraimense, aumentando o número de crianças sem seus pais.
No dia 13//12/2022, a médica pediátrica do HCSA indicou alta hospitalar, devendo ser observados os cuidados sanitários com a sonda nasogástrica e uso de dieta enteral, sem a possibilidade de alimentação oral, como apontou o laudo de uma nutricionista da unidade hospitalar, onde BY encontrava-se internado. Um dos integrantes da rede de proteção informou sob a condição de sigilo da fonte que o DSEI-Yanomami afirmou não possuir condições de manter a criança no território, em virtude de não conseguir manter os insumos necessários e não ter profissionais para acompanhamento.
A postura do DSEI Yanomami e Ye'kuana, em reunião realizada em 17/03/2022 na defensoria pública da união, com a presença da procuradoria geral da república demonstra a falência do sistema de cuidado que enfrenta a saúde indígena em todo o país. A precariedade na gestão, entre 2019 e 2022, contribuíram muito ao atual quadro de desorganização dos serviços. No entanto, o distrito não possui política clara de humanização no atendimento de longo prazo, como é a situação de BY. Quando o ex-coordenador Leandro Lacerda afirma não possuir condições de prestar atenção à saúde na comunidade, coloca em risco toda uma família, vivência essa de Oma e Bonita.
A atual gestão do DSEI-Yannomami/Ye’kuana não se manifestou para esclarecer sua incapacidade de garantir o pleno cuidado de BY e não possuir uma política de interação com a família que ficou na TI até o mês de agosto de 2023, sem informação alguma da situação da saúde de seu filho, resultando no retorno a cidade. A humanização do sistema de atenção à saúde é fundamental às famílias indígenas, informes médicos devem ser uma rotina a ser adotada quando houver a necessidade de longos períodos de internação.
O retorno da família a Boa Vista
A família caminhou por 36 dias da comunidade Koroasi-piitheri até a vicinal 2, localizada no município de Iracema. Deslocaram-se ainda com ajuda da polícia, entre a fazenda que trabalharam plantando banana, para Mucajaí, e de transporte alternativo até Boa Vista. Integram o grupo, além dos pais de BY, seus outros 7 filhos, quatro deles menores de 10 anos de idade. Uma de suas filhas, L.Y, 12 anos, foi sequestrada por um morador da região de Iracema, retornando ao convívio dos pais 2 meses após a chegada deles a Boa Vista. O aliciamento de crianças e adolescentes Yanomami, da região do Catrimani e Ajarani, é uma realidade, principalmente quando existem esses longos deslocamentos que ampliam a insegurança alimentar enfrentada.
A chegada em Boa Vista, no dia 25/10/2023, de Oma e Bonita Yanomami trouxe a surpresa de BY não se encontrar mais no HCSA, local onde eles deixaram seu filho. Sem seu conhecimento, sua criança havia sido institucionalizada pelo estado brasileiro. O procedimento efetivado irregularmente pelo HCSA, Conselho Tutelar e Juizado da Infância e Adolescência conduziram 2 crianças Yanomami ao abrigo infantil Criança Feliz em confronto a todos os princípios estabelecidos pelo ECA, especialmente em virtude dos genitores da criança encontrarem-se na TI, desde o mês de março.
A institucionalização de BY
Durante o mês de agosto, enquanto seus pais iniciaram a jornada em direção a Boa Vista a procura de seu filho, BY teve determinada sua institucionalização pela vara da criança e juventude de Roraima, órgão do Tribunal de Justiça, instituição que se negou a esclarecer informações sob a alegação de que o processo corre em segredo de justiça. O filho de Oma e Bonita Yanaomami, foi levado ao abrigo infantil Viva Criança.
Segundo informações, no processo de BY, consta com uma decisão judicial determinando a reintegração da guarda da criança à família, datada de 10/02/2023, mesmo assim, o Estado não possibilitou que a alta hospitalar, do filho de Bonita Yanomami, garantisse seu retorno aos pais. O artigo 18, da Lei 8.069/1990, estabelece que é dever de todos velar pela dignidade da criança. O Estado brasileiro priorizou a dignidade de BY ao não garantir seu retorno ao seio familiar?
Já o artigo 19, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), estabelece que é direito da criança ser criada no seio de sua família, por isso estabelece o parágrafo 1º que toda criança institucionalizada - como foi BY ilegalmente, pois seus pais se encontravam em sua comunidade indígena e não foram avisados da alta hospitalar – deve ter sua situação analisada a cada 3 meses, a fim de fundamentar a reintegração familiar. BY se encontra institucionalizado há 6 meses, e os pais não possuem autorização para ver o filho.
A visita do casal ao abrigo Viva Criança, mantido pelo Governo do Estado, ampliou a tristeza. Além de serem impedidos de entrar para verem seu filho, foram recepcionados por militares da tropa de choque, os quais davam proteção a diretora e funcionários da unidade, como se os pais fossem marginais, não genitores de uma criança institucionalizada de forma irregular. Os atos de 30/10/2023 demonstram a brutalidade com que as organizações estaduais tratam os povos indígenas em Roraima.
O ECA, estabelece no artigo 100, que as medidas de proteção, as quais submeteram BY e outras crianças Yanomami, devem observar a prevalência familiar na promoção de direitos e proteção da criança, além da obrigatoriedade da informação aos pais dos seus direitos, motivos da institucionalização e como se processa a intervenção do Estado. No caso de BY vemos uma violência estatal contra a família que teve seu filho direcionado ao abrigo infantil, sem os pais serem comunicados, na realidade, achavam eles que o filho se encontrava sob cuidados médicos, não judiciais.
No intuito de tentar visitar seu filho Oma Yanomami elabora uma carta direcionada ao magistrado responsável pelo caso, o juiz Parima Veras, no texto afirma que a família se encontra muito triste, diz ser adulto e que BY é seu filho de verdade. Veio a cidade com os outros filhos que estavam com saudades do irmão. Solicita uma reunião com o juiz e ao terminar a carta, mesmo ante a opressão do poder público contra sua família, pede o Xapori que o juiz não fique com raiva.
A manifestação dos pais de BY e a atuação da Rede de Proteção aos Yanomami em situação de rua sensibilizaram o juiz Parima Veras que autorizou uma visita a BY, no dia 07/11/2023. No entanto, a alegria de ver a criança foi frustrada em virtude de BY se encontrar dormindo, sem reação alguma. Bonita queria colocar seu filho no colo e não foi possível, em virtude das restrições estabelecidas pelo abrigo. Durante a visita Bonita estranhou seu filho se encontrar com outro aparelho hospitalar, foi explicado, por meio do interprete que acompanhou o casal que foi realizada uma traqueostomia para facilitar a respiração da criança. Infelizmente, não foi permitido que nenhum membro da rede de proteção aos Yanomami em situação de rua acompanhasse a visita, junto ao juiz, a diretora do abrigo, um intérprete e os pais. Os irmãos também não tiveram autorização de ver a criança. Essa foi a última vez que os pais olharam seu filho que continua no abrigo Viva Criança.
Violência e Retorno à comunidade
A estadia com os outros filhos na cidade consistia em outro risco ao casal, pois além do BY, poderia Oma e Bonita Yanomami terem as outras crianças institucinalizadas pelo Estado, em virtude da situação de vulnerabilidade vivida nas ruas de Boa Vista. Pois, o Estado brasileiro não possui nenhuma estrutura de suporte e apoio aos povos da TI Yanomami que necessitam vir a cidade, por vários fatores, seja a regularização de documentos, problemas de saúde ou mesmo receberem benefícios sociais.
Porém, foram agressões físicas contra Bonita e sua filha LY, uma menina de 12 anos, ocorridas nas ruas de Boa Vista que levaram a família, sob rejeição da mãe de BY, a retornarem à sua comunidade em 26/12/2023. Bonita Yanomami partiu sem poder cantar, falar ou colocar seu filho no colo, em virtude da rede de proteção à criança em Roraima não priorizar os laços familiares como referência no processo de proteção de nossas crianças, como deixa claro o caso de BY.
Na elaboração desta reportagem o DSEI-Yanomami e Ye’kuana, o Tribunal de Justiça, a Frente de Proteção Etnoambiental Yanomami e Ye’kuana/FUNAI, o Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente do Estado de Roraima e a Hutukara foram procurados mais nenhum quis se pronunciar sobre o assunto.
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