Segundo historiadora, é preciso conhecer a história africana e afro-brasileira para combater a intolerância religiosa no país
Por: Camilla Salustiano e Cecília Veloso
Foto: Camilla Salustiano
“Axé é uma palavra que significa força. Em momentos de luta, ela é a resistência, sempre será”, afirma Carlos Fournier, pai de santo de um terreiro roraimense de candomblé - a mesma religião da casa de culto que foi vítima de ataques de intolerância religiosa, no início de julho. Mesmo tendo raízes milenares, os adeptos das religiões de matriz africana, no Brasil, precisam diariamente de axé para enfrentar a ignorância de quem está do outro lado.
Em entrevista, a coordenadora do projeto ‘Capacitação e Identificação de Bens Culturais’, junto às comunidades de religiosidade de matriz africana e afro-brasileira mapeadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a historiadora Monalisa Pavonne, explica que o principal motivador da intolerância religiosa ainda ser recorrente é pela falta de reconhecimento e estudo sobre a história da África e a afro-brasileira.
“Minha relação com as religiões de matriz afro-brasileira é muito recente. Nós vivemos um momento em que a história foi retirada da grade de disciplina obrigatória do ensino médio e, dentro disso, a lei que previa o ensino de história e cultura da África também parou de ser cumprida. As religiões fazem parte desse processo. Então, se a gente não discute isso nas escolas, se os historiadores não discutem, a gente tem um problema social”, expôs.
Foto: Cecília Veloso
O projeto citado pela pesquisadora resultou no livro “Fé e Resistência”. Um dos pontos abordados na obra é a intolerância religiosa nas escolas, onde há casos em que crianças sofrem bullying e até racismo religioso.
“Nós percorremos algumas casas de umbanda e candomblé em Boa Vista. Durante as entrevistas, uma das questões era se as crianças sofriam com algum tipo de preconceito ou dificuldade, devido à própria religiosidade. Nós ouvimos relatos muito parecidos com os que vieram à tona na mídia, em que denunciaram pais de crianças, que passavam por um ritual religioso, ou, então, crianças que sofreram bullying, porque foram à escola com a cabeça raspada”, relata a pesquisadora.
Segundo o levantamento realizado pelo Iphan, entre 2016 e 2018, foram mapeadas 11 casas de oração de religiões de matriz africana, como candomblé e umbanda, na capital de Roraima. Uma delas é a Àbasá N’gola Tàtá Bòkùlè, liderada por Carlos Fournier. A roça - como é chamada a casa de culto - foi fundada em 1989 e conta com uma programação de encontros durante a semana.
“Às segundas, fazemos o tabuleiro do orixá Obaluaê, com orações dedicadas à saúde. Às quintas e sextas, temos as consultas com as pessoas que nos procuram para resolver questões espirituais. Além disso, também temos programações de festas e reuniões em datas específicas. Porém, cada casa tem sua doutrina. Às vezes, são festas diferentes e até nações diferentes, pois o candomblé é um conjunto de nações, como angola, jeje, ketu e nagô”, disse.
O Pai Bokúlê explicou que o candomblé é uma religião hierárquica e familiar, além de ter um grande papel de destaque na história do Brasil, visto que foi trazida pelos escravos advindos da África, no século XVI.
“Os conhecimentos sobre a religião são repassados pela oralidade, de avô para pai, filho e bisneto, apesar de que há muitos livros didáticos atuais, que aprimoraram os conceitos do candomblé. Nossos antepassados eram analfabetos, os colonizadores insistiam que eles continuassem assim, para que não pudessem difundir a própria cultura e palavras de liberdade”, pontuou.
Ele enfatizou que o candomblé é uma religião que acolhe, os integrantes da casa de candomblé se tratam como parte da família. “É comum chegar aqui e ver as pessoas pedindo bênção umas das outras ou então chamar o próximo de tio, pai, mãe, são parentes de santo”.
Dandara Ferreira é candomblecista desde o nascimento, há 20 anos, e é uma das integrantes da casa do Pai Bokúlê. Ela expressa a forte conexão que tem com a religião. “Não existe possibilidade de vida onde o candomblé não esteja em mim”.
Foto: Arquivo pessoal (Adilson Brilhante)
A universitária relata que já escutou comentários maldosos no período da escola, mas sempre enfrentou essa situação explicando para as pessoas a respeito da sua religião e convidando-as a conhecerem e desmistificá-la de “preconceitos estruturais''.
“Acredito que o desconhecimento e a intolerância sobre as religiões de matriz africana são um acúmulo de racismo e falta de vontade para entender o diferente, já que é mais cômodo perpetuar o pensamento desequilibrado de uma sociedade que não tem respeito com o distinto”, afirmou.
Umbanda
Outra religião de matriz africana que conta com muitos seguidores em Roraima é a umbanda. Conforme Hellen Cristina, mãe de santo da Tenda Espírita de Umbanda Santa Sarah Kali, a religião foi criada em 15 de novembro de 1908, no Brasil, por Zélio de Moraes.
“A umbanda é uma religião brasileira, que já existia antes de 1908. Era popularmente chamada de ‘macumba carioca', na cidade do Rio de Janeiro. Porém, só foi codificada mesmo em 1908, através da anunciação do caboclo brasileiro das sete encruzilhadas”, explicou.
Foto: Arquivo pessoal
A Mãe Hellen afirma que o pilar principal da crença é a caridade e a humildade. “Você não vai ver tanto luxo na umbanda, ela é muito pé no chão”. Quanto às tradições do terreiro, a líder explica que cada casa tem suas particularidades, assim como mencionado pelo Pai Bokúlê , sobre o candomblé.
“Nossa religião se ramifica muito, cada terreiro tem os seus próprios rituais e dogmas, só os orixás são os mesmos. A religião tem um certo pudor, com mentalidade cristã, que não faz com que a gente pratique o mal, amarrações ou sacrifícios de animais”, comentou.
Ela une características de outras religiões, como o catolicismo, espiritismo e as de matrizes africanas e indígenas. Além disso, a mãe de santo acredita que é a religião que mais aceita diversidade em sua comunidade.
“A umbanda tem esse papel de acolher, ela agrega valores e rituais para si, tanto é que eu acredito ser uma das religiões que mais aceitam pessoas diferentes. Por isso que as pessoas se identificam, porque, se você agrega, não importa quem é você, e, sim, sua evolução espiritual”, apontou.
Entretanto, o acolhimento fornecido ao próximo nem sempre é recíproco por quem não crê nos dogmas da umbanda. Hellen enfatiza que o dia a dia de quem escolhe seguir a religião é de resistência.
“A única coisa que pedimos é respeito. Acredito que a intolerância sempre vai existir, mas por falta de conhecimento. Alguns vêm à casa com respeito e, sendo tratados da mesma forma, mudam de opinião. Nossa casa nunca foi desrespeitada, mas sempre tomamos muito cuidado para que não tenha perigo de acontecer algo”, relatou.
De acordo com a Mãe Hellen, as entidades espirituais, que fazem parte da teologia da Umbanda são os orixás e guias espirituais, que são: Caboclo e Preto-Velho, Pomba-Gira, Malandro, Boiadeiro, e Ciganos.
Conceitos distorcidos
As crenças afro-brasileiras têm marcado cada vez mais presença na cultura nacional, como na maior festa do ano, o carnaval, ou, então, o hábito de usar roupas brancas no réveillon e pular sete ondas no mar. No entanto, ainda é preciso combater a atribuição de termos usados nessas religiões ao mal ou ao errado. Assim, o Pai Bokúlê e a Mãe Hellen desmistificam alguns conceitos, são eles:
Macumba: é um instrumento de percussão de origem africana, semelhante ao instrumento reco-reco. Quem toca esse instrumento é macumbeiro.
Exu: orixá ou entidade (varia de cada religião) que protege as pessoas. Tem papel comparado ao do Diabo, do cristianismo, porém, na teologia africana não há representação do mal.
“Volta pro mar, oferenda”: a oferenda é dada aos orixás e entidades como um presente de agradecimento por protegerem os integrantes da religião. A expressão associa ela como algo negativo, que deve sumir, é ofensiva.
Principais diferenças entre candomblé e umbanda
Ilustração: Camilla Salustiano
Terecô
Como mencionado pela Mãe Hellen, a umbanda conta com várias ramificações, uma delas é o terecô, religião afro-brasileira prevalecente no leste do estado de Maranhão. Maria de Jesus da Silva foi uma das mães de santo que trouxeram a crença para Roraima, quando se mudou para o estado, em 1994. Apesar disso, só fundou a Tenda de Santa Bárbara Guiado por Deus, Dirigido por Mim e Meus Filhos 13 anos depois, em 2007.
Conheça a casa de oração de terecô da Mãe Preta:
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