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Xenofobia sob o olhar das vítimas

Histórias de quem sofreu momentos de preconceito e humilhação por possuir nacionalidade diferente em terra alheia Por: Kallryn Siqueira Roraima tem sido a porta de entrada para o Brasil para muitos venezuelanos que fogem da crise política, econômica e humanitária do país vizinho, que teve início em 2013, quando Nicolás Maduro assumiu a presidência após a morte de Hugo Chávez. A capital Boa Vista, sem esperar e ter estrutura para tanto, viu-se abarrotada de migrantes venezuelanos que, no pensamento popular, foram os responsáveis pelo aumento da criminalidade, e passou desenvolver pelos indivíduos de nacionalidade venezuelana, depreciação. Fugindo do caos que se instalou na Venezuela, segundo dados recentes da Organização das Nações Unidas (ONU), mais de 6 milhões de venezuelanos já deixaram o país. Sendo o Brasil, o quinto destino mais buscado por eles para recomeçar a vida, seguido por Colômbia, Peru, Equador e Chile, conforme os dados da R4V, plataforma que consta informações da ONU e do governo brasileiro. De janeiro de 2017 a março deste ano, segundo levantamento do Subcomitê Federal para Recepção, Identificação e Triagem de Imigrantes, foi registrada a entrada de mais 700 mil venezuelanos no Brasil. Destes, mais de 66 mil foram enviados para outros estados brasileiros pelo Governo Federal através da Operação Acolhida . O processo de interiorização teve início em abril de 2018. A região sul foi a que mais recebeu migrantes. Eles são mandados para outros estados, de acordo com as ofertas de emprego do local e qualificação dos mesmos. Com o cenário cada vez mais alterado pela presença de venezuelanos em locais públicos (feiras, praças, semáforos, comércios, terminal rodoviário), políticas públicas voltadas para o acolhimento dos refugiados e a publicação de cometimento de crimes por migrantes, brasileiros passaram a nutrir hostilidade, gerando diversos protestos contra a entrada de venezuelanos em Roraima. Dessa maneira, eles passaram a ser vítimas de xenofobia , seja em ações e palavras, seja em rodas de conversas, tendo sua nacionalidade como alvo de preconceito e desdém. Saída Forçada e a Vontade de Trabalhar Com um ano e um mês no Brasil, Maria Angélica Lanza Milano de 37 anos, veio com a família em busca de melhores condições de vida. Passou seis meses na cidade de Boa Vista e hoje está há sete meses em São Paulo, após a ajuda de uma comunidade católica com o transporte aéreo. Relatou que teve que deixar dois locais de trabalho por conta do preconceito que sofria por ser “estrangeira”, segundo ela. Contou que não sofreu qualquer violência física, mas que os colegas de trabalho faziam comentários ruins ao seu respeito, humilhando-a constantemente, e embora não fale muito a língua portuguesa, mas compreende bem o idioma, e flagrou vários desses momentos. Para Maria os brasileiros julgam todos os venezuelanos iguais pelas más atitudes de alguns, mas que não é assim, pois: “Existe venezuelano de bem. Há os que roubam, mas há outros que só querem trabalhar.” Ainda sobre a má impressão que têm por conta de sua nacionalidade e o preconceito sofrido, Maria acredita que todos são iguais e têm os mesmos direitos. “Somos todos seres humanos. Uns mais ruins que outros, mas somos humanos e iguais e temos os mesmos direitos, né?”, desabafou. Eu me sentia mal. Eu só queria trabalhar e eles faziam eu me sentir ruim, disse Maria Sobre brasileiros “não gostar de venezuelanos”, Estéban Hernandez Diaz de 29 anos, que trabalha como auxiliar de serviços gerais em um prédio residencial na zona oeste de Boa Vista e está em Roraima há quatro anos, diz compreender: “Eu compreendo por brasileiros não gostar de venezuelanos. Sei que tem os que roubam, mas não são todos. O brasileiro generaliza. Eu por exemplo, só quero trabalhar e poder comer, viver e têm muitos como eu também.” Estéban chegou andando ao Brasil pela fronteira entre os dois países, em Pacaraima. Contou que só deixou o seu país pela situação crítica de sobrevivência, se não fosse a dificuldade enfrentada nos últimos anos, não teria razão para sair de sua terra. No início teve dificuldade com o idioma português. Mas logo conseguiu trabalho de repositor em um comércio e se sentia satisfeito, com o seu pagamento no fim do mês, poder comprar alimentos e produtos de higiene pessoal, o que já não conseguia fazer no último ano quando ainda estava na Venezuela. “A sensação de tomar banho com sabonete é muito boa”, falou sorrindo passando as mãos em seus braços. Lembrou que, certa vez, quando estava no caixa de um mercado pagando por suas compras, o atendente informou que não teria o troco em moedas para dar e perguntou se ele aceitaria em ‘balinhas’, no que ele respondeu que “ sí” , Estéban contou que havia uma senhora próximo dele e que ao ouvi-lo falar em espanhol o olhou de cima para baixo e se afastou consideravelmente dele. “Me senti muito mal. Envergonhado. Parecia que eu estava doente e poderia transmitir doença a ela. Saí triste de lá. O olhar dela foi ruim para mim”, relatou com olhos baixos e voz embargada. Contou ainda que recebe com frequência “olhares estranhos” quando chega aos lugares e as pessoas constatam que é venezuelano pelo seu sotaque, mesmo se esforçando para falar o melhor português de que é capaz. Falou ainda que não pensa em retornar ao seu país, pois não acredita que a situação mude para melhor. Disse que sempre sonhou em cursar Medicina e construirá a sua vida no Brasil. “Nunca me passou pela cabeça deixar a Venezuela, não havia motivo. Mas as coisas ficaram difíceis como nunca imaginei. E para continuar a viver e ter alguma coisa e ser alguém me vi obrigado a sair de lá. As pessoas não entendem. Acham que estamos ocupando o lugar que não é nosso, mas não calculam que foi uma decisão forçada para todos e não uma escolha.” Atuando há 11 anos no ramo da pintura imobiliária, Pedro Jose Brito Araya de 24 anos, está no Brasil com sua família há quatro anos e meio. Contou que no início teve dificuldade em arranjar trabalho e alugar moradia. Segundo ele, na hora de procurar por trabalho as pessoas o humilhavam e não o respeitavam pelo fato de ser um estrangeiro da Venezuela. Quanto ao aluguel de casa, os locadores dos imóveis sempre pediam indicações de brasileiros para fechar contrato, o que impossibilitava o negócio, pois além de não possuir amizades com brasileiros, todos pareciam desconfiados por locar sua propriedade a um cidadão de nacionalidade venezuelana. Pedro relatou que sentia indignação por não conseguir trabalho com facilidade. Sabia que havia venezuelanos que tinham feito “coisas imperdoáveis e ruins” e ele próprio se sentiu frustrado com isso e, até concorda, com o fato de brasileiros desconfiarem e desacreditarem do povo venezuelano, porém, “Eu não compartilho é a razão de generalizar”, falou a respeito do brasileiro julgar a todos pelos delitos de alguns. Hoje reconhecido na área da pintura em Roraima, Pedro diz que não passa mais por situações xenofóbicas, pois conseguiu, através do seu trabalho, mostrar o seu valor e alcançou o respeito das pessoas, mas ressaltou algo que lhe incomoda até hoje: “Usar a situação do meu país para nos humilhar e fazer piadas sem graça.” Descreve-se como um “afortunado em relação a pessoas”, pois hoje seu círculo de amizade cresceu e, segundo ele, “É formado por 70% por brasileiros e 30% por venezuelanos”, e encerrou dizendo que a vida é “imprevisível”, e que no dia de amanhã a pessoa pode precisar da ajuda daquele alguém que foi “humilhado e desrespeitado por ela.” Campanhas Contra a Xenofobia A Assembleia Geral das Nações Unidas no ano 2000, instituiu o dia 18 de dezembro como o Dia Internacional dos Migrantes, a data “celebra a contribuição das pessoas migrantes às sociedades de origem e de destino e visa estimular a reflexão sobre seus direitos” - diz o site da FRATERNIDADE, Missões Humanitárias Internacionais . Próximo ao dia de comemoração, e m dezembro de 2017, foi lançada a campanha “E se fosse você?”, realizada pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e Rede Acolher da Universidade Federal de Roraima (UFRR), com os apoios da Agência da ONU para Refugiados, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados ( ACNUR), o Escritório Regional para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) e a Organização Internacional para as Migrações (OIM). O objetivo era promover empatia pelos migrantes, a partir da ideia de que todos temos sonhos e buscamos melhores condições de vida constantemente e, muitas vezes, deixar o local de origem e se fixar em terra estranha, é decisão motivada pela necessidade e não por querer. A ONU com o apoio da União Europeia (UE) lançou em janeiro de 2019 uma campanha contra a xenofobia no Brasil. A iniciativa era sensibilizar quanto a situação dos refugiados venezuelanos no Brasil, especialmente em Roraima, e desmontar todas as formas de preconceitos. Xenofobia é Crime Xenofobia é crime previsto em Lei, logo todo ato discriminatório e preconceituoso, desmerecendo a figura do ser humano por sua cor, raça, etnia, religião e origem de nascimento sofrerá sanção, caso a vítima represente contra o autor. A pena para quem, segundo o Art. 20 da Lei 9459/97, “Praticar , induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” é de um a três anos de reclusão e multa. Em julho de 2018, o Ministério Público do Estado de Roraima (MP-RR) denunciou cinco pessoas por crime de xenofobia em Mucajaí, cidade ao Sul de Roraima e distante cerca de 58km da capital Boa Vista, a ação preconceituosa e violenta se deu em março de 2018 durante protestos na cidade contra a permanência de venezuelanos. Os denunciados usaram microfones para incitar palavras de ódio aos migrantes além de expulsarem de um abrigo improvisado os moradores. Seus poucos pertences foram destruídos, queimados e jogados em via pública, incluindo: roupas, colchões (quem tinha) e até documentos pessoais. O protesto teve início após uma briga entre brasileiros e venezuelanos que resultou na morte de um morador da região, Eules Marinho de Souza. Manifestações semelhantes contra a comunidade venezuelana aconteceram em novembro de 2021 em Pacaraima, município localizado ao Norte de Roraima, após o assassinato do comerciante Djalma Alves Lobo, numa tentativa de assalto durante a madrugada ao estabelecimento comercial de sua propriedade. Neste ato, moradores dispararam fogos de artifício na direção de venezuelanos, entre os quais haviam crianças. Desde 2014, quando o fluxo de venezuelanos começou a ficar evidente, diversos protestos já foram realizados contra a entrada deles, tanto em cidades do interior como na capital. Em 2018, houve uma explosão de protestos e atos contra os venezuelanos, onde muitos foram expulsos e tiveram seus objetos queimados e, alguns por medo, acabaram retornando a pé para o seu país. Ações como essas escancararam ao mundo a xenofobia em Roraima. Nas eleições municipais de 2020, o Ministério Público Federal em Roraima (MPF-RR) abriu uma investigação em desfavor de dois candidatos à Prefeitura de Boa Vista por suspeita de xenofobia. Segundo documento da Defensoria Pública da União em Roraima (DPU), os discursos dos dois candidatos poderiam ter “Conteúdo xenofóbico ou de propostas contrárias à Constituição da República e à legislação migratória brasileira.” Em publicação feita em agosto de 2018 ao site RFI CONVIDA, o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima, Gustavo Simões, declarou: “O clima de xenofobia é muito alimentado pelo uso político da crise migratória.” E sobre os roraimenses serem hostis com os cidadãos vindos da Venezuela por conta da alta de crimes no Estado, esclarece que há uma sensação de insegurança por parte da população pela presença de muitos venezuelanos na cidade, porém, que os dados oficiais “Não mostram qualquer correlação entre a presença de migrantes e o aumento da criminalidade.” Somos Todos Iguais Ainda no ano de 2018, quando o clima entre brasileiros e venezuelanos era de tensão, venezuelanos e simpatizantes sensibilizados com a causa migratória, realizaram um protesto na cidade de Boa Vista contra a xenofobia. O ato pedia pela paz e melhor convivência entre os povos. Estimativas da ONU no fim do ano passado, levantaram quem em Boa Vista vivem cerca de 32 mil venezuelanos. Destes, pelo menos dois mil têm as tendas da Operação Acolhida como as suas moradias. E segundo o Art. 5º da Constituição Federal, no que diz respeito a direitos e deveres somos todos iguais, brasileiros e estrangeiros residentes no país. Portanto, ao estarem no Brasil, podem ocupar vagas de trabalho, receber atendimento nos postos públicos de saúde, ser beneficiados por programas sociais do Governo e mais: “Todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo- se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.” Alfredo Brito, venezuelano de 30 anos, fala da dificuldade em conseguir trabalho por conta da sua nacionalidade, da tristeza por sofrer tal preconceito e diz: "Tem que conhecer melhor a gente. Nem todo venezuelano é ruim." Seu discurso é como o da maioria : " Só queria trabalhar."

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