UHE Bem-Querer: pouca energia, alto impacto ambiental
Roraima vive a incerteza de um fornecimento de energia instável. No último dia 15 de abril todo o estado sofreu um apagão que durou mais de cinco horas e afetou também o abastecimento de água. Mas, barrar o Rio Branco é a solução? Por Jacildo Bezerra. O tão sonhado desenvolvimento do estado de Roraima sempre esteve atrelado a dois gargalos que a sua localização face aos demais estado do pais impunha: a distância. Com isso, o binômio estradas-energia eram os entraves que foram em parte solucionados ao longo das décadas de 90 e nas primeiras eras do ano 2000: em 1998 a BR-174 era asfaltada, garantindo o acesso mais rápido ao estado do Amazonas. Já a energia chegava da distante Hidrelétrica de Guri, na Venezuela em 2001, possibilitada por um acordo binacional entre Brasil e o governo do então presidente Rafael Caldera, cessando a dependência das usinas termelétricas e os constantes apagões, benefício que chegava a todos em moradores de Roraima. Em 2019, com a crise política no país vizinho, o fornecimento de energia foi cortado. A volta do uso das termelétricas suscitou os estudos de novos projetos viáveis para produção de energia de fonte limpa e confiável. Fruto dos estudos do Programa de Aceleração do Crescimento - PAC 2, do Governo Federal, surgiu ainda em 2017 a previsão da construção de uma usina no médio rio Branco, mais precisamente nas Corredeiras de Bem-Querer, paraíso natural, histórico e turístico da região. Segundo informações constantes do site da Empresas de Pesquisa Energética - EPE, responsável pelos estudos preliminares para sustentar a viabilidade do projeto, se a usina for aprovada, ocupará áreas dos municípios de Boa Vista, Bonfim, Caracaraí, Cantá, Iracema e Mucajaí. Segundo a EPE, os estudos para identificação do potencial hidrelétrico da bacia do rio Branco vêm sendo realizados desde a década de 1970. Em 2011, o Estudo de Inventário Hidrelétrico da Bacia do rio Branco , realizado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e aprovado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), identificou quatro aproveitamentos com potencial de geração de energia hidrelétrica total de 1049 MW. A UHE Bem Querer está na etapa de viabilidade, onde os estudos de viabilidade e de impacto ambiental vão aprofundar o conhecimento sobre a região da usina e, detalhar o projeto com relação a equipamentos, capacidade de geração de energia elétrica, custos, e verificar quais impactos negativos e positivos (benefícios) serão causados pela construção e operação da usina e propor medidas para diminuir os efeitos negativos do projeto e potencializar os positivos. Os estudos de viabilidade da usina iniciaram em 2013 e os Estudos de Impacto Ambiental e do Componente Indígena em 2018. a empresa afirma que a obra não alagará áreas protegidas como Terras Indígenas ou Unidades de Conservação. A barragem da UHE Bem Querer Para entender a complexidade da obra, um muro feito de concreto e terra com aproximadamente 8 km de extensão será construído em Caracaraí, ligando as duas margens do rio Branco e provocando um desnível do rio de aproximadamente 15 metros. A estrutura deve receber a casa de força com 11 turbinas bulbo capazes de gerar até 650 MW de energia elétrica, o vertedouro com capacidade para suportar vazões de até 27.500m cúbicos por segundo, para evitar que grandes cheias possam comprometer a estrutura da barragem ou colocar em risco a população local. A obra deve contar ainda com o sistema de espera da eclusa para permitir no futuro a construção da eclusa que permitirá a navegação entre Caracaraí e Boa Vista, e o sistema de transposição de peixes para permitir a passagem de peixes migradores acima da barragem. O que chama a atenção é que o reservatório da represa terá cerca de 150 km de extensão e uma área de aproximadamente 520 quilômetros quadrados, onde 37% correspondem a calha do rio Branco e de seus afluentes e 63% irão alagar áreas dos municípios de Boa Vista, Caracaraí, Cantá, Iracema e Mucajaí. A usina terá operação do tipo fio d’água, o que permite que o ciclo hidrológico natural dos rios seja mantido, ou seja, com águas altas nos períodos de chuva e águas baixas nos períodos de estiagem. Assim, garante a EPE, mesmo após a construção da usina o rio continuará subindo e descendo conforme a quantidade de chuvas, pois toda a água que chegar ao reservatório passará pela usina e seguirá o seu curso natural na região abaixo da barragem. Uma importante característica da UHE Bem Querer é que entre junho e agosto (época de cheia na bacia do rio Branco) a usina irá produzir a maior quantidade de energia. Nesses meses, a maioria das usinas hidrelétricas existentes no país está com menor capacidade de geração de energia, devido ao período de seca em grande parte dos rios brasileiros. A energia produzida será levada até a subestação Boa Vista por meio de uma linha de transmissão de 500kV com aproximadamente 150 km de extensão. A partir daí haverá a conexão do linhão Manaus a Boa Vista, permitindo que Roraima se integre ao Sistema Interligado Nacional (SIN) . Uma vez integrada ao SIN, Roraima receberá energia produzida em outros estados e poderá, ainda, exportar excedentes energéticos locais para outras regiões do Brasil. Muito impacto ambiental, poucos benefícios A obra da UHE Bem-Querer é questionada por inúmeros órgãos de defesa do meio ambiente, dentre eles o Instituto Socioambiental, por conta do alto impacto da obra no meio ambiente apesar do que diz a Empresa de Pesquisa Energética, ligada ao Ministério de Minas e Energia. Além disso, o rio Branco possui forte ligação com a história e a vida das pessoas que moram em Roraima. Por suas águas claras chegaram os primeiros habitantes da região, em princípios do século 19, e as primeiras cabeças de gado que garantiram a conquista da região para o império brasileiro. O lago da barragem com seus 150 km de extensão inundará áreas acima de Boa Vista, acabando com praias, propriedades rurais, a mata ciliar e destruindo parte da BR-174, rodovia que liga a capital de Roraima e Manaus. Seus efeitos serão sentidos em seis municípios, além de 7 unidades de conservação federais. Com seus mais de 559 quilômetros quadrados vai se tornar maior do que o reservatório previsto para Belo Monte, no Pará, porém a usina paraense tem uma capacidade instalada de cerca de 11.200 megawatts, contra pouco mais de 650 megawatts previstos para Bem Querer, ou seja, menos de 6,3% de Belo Monte. a baixa capacidade de produção é porque o rio Branco corre em uma área plana, sem uma grande queda d’água que possa ser aproveitada para a geração de energia. A diferença que existe entre a confluência dos rios Uraricoera, onde se forma o Branco até a sua foz, no rio Negro, na fronteira com o Amazonas, é em torno de 50 metros ao longo de seus 584 quilômetros. já entre Boa Vista e o local previsto para a barragem essa diferença é de apenas 17 metros. Os críticos ao projeto, dentre eles o biólogo Ciro Campos, do Instituto SocioAmbiental, alertam para o impacto ambiental provocado pela hidrelétrica face a baixa produção de energia para a produção de pouca energia. Em entrevista a nossa equipe, Ciro disse que não foram realizados estudos de outras possibilidades para Roraima ter segurança energética e energia a um custo razoável, gerando empregos e negócios. Segundo ele, o plano de construção da UHE Bem-Querer é antigo e não foi devidamente atualizado, o que é considerado um erro seguir no estudo para construção de uma grande hidrelétrica sem antes considerar as alternativas que se tem a disposição no mercado, com o mesmo custo da obra no rio Branco. Para o ISA levando-se em conta a natureza da obra, o seu tamanho e o fato de ser construída na planície ela tem um impacto ambiental muito maior do que os que estão sendo apontados nos estudos dirigidos pela EPE, especialmente o número de famílias afetadas, a área algar e os impactos para o estado de Roraima serão maiores. “O preço da obra via precisar incorporar os problemas que vão ser trazidos pelo estudo, tornando o custo dela mais alto o que aumenta a viabilidade de se estudar outras coisas para se colocar no lugar”, disse o biólogo. Para Ciro, o valor inicial da obra, algo em torno de R$ 10 bilhões, que será aditado ao longo do processo de construção caso seja aprovada a sua viabilidade, chegará ao valor correspondentes a um terço do que custou Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, e gera dez vezes menos energia. “O impacto de Belo Monte era bem menor do que aconteceu no Xingu, e a gente acredita que o impacto previsto nesse estudo é menor do que viria acontecer se essa UHE fosse mesmo construída”. Ciro adiantou que nos últimos anos o Fórum de Energias Renováveis realizou seminários on-line, onde pesquisadores da Universidade Federal de Roraima, alertaram para a capacidade adicional de alagamento em função de que o lençol freático em Roraima é muito superficial. Qualquer alagamento que coloque o rio Branco numa situação de cheio faria com que o lençol se erga aumentando o alagamento para áreas além do previsto, incluindo um trecho da BR-174. Em sua tese de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Geografia na Universidade Federal de Roraima, o pesquisador Eclair Moraes, afirma que com esse projeto espera-se entre outras consequências, o alagamento de áreas de Preservação Permanente e de áreas produtivas, o deslocamento de moradores locais (ribeirinhos), bem como a provável perda de áreas utilizadas para o lazer, tais como as praias. A versão da EPE: Bem-Querer é uma possibilidade real Procurada pela equipe do Amazoom, representantes da Empresa de Pesquisa Energética, responsável pelos estudos iniciais para indicar a viabilidade da obra, disseram que a UHE Bem-Querer tem seu na matriz futura de produção energética no país, contudo, isso não significa que ela será efetivamente construída. Segundo Bernardo Folly de Aguiar, Superintendente de Geração de Energia da EPE,a empresa ainda não recebeu as novas diretrizes do governo Lula com relação a obra, que consta do Plano Decenal de trabalho do governo, mas esse é um processo bem longo. “Os estudos para levantamento do inventário do potencial da bacia hidrográfica do Rio Branco iniciaram no ano 200”, disse Bernardo. Já Mariana Rodrigues de Carvalhaes Pinheiro, consultoria da Superintendência de Meio Ambiente, questionada sobre os impactos da obra na região, destacou a realização do Estudo de Impacto Ambiental, que faz parte do processo, como elemento que vai definir as medidas que irão reduzir os impactos no entorno da usina. A superintendente disse que a proposta é que a usina venha conectar Roraima ao Sistema Integrado Nacional, e que a obra “não é para atender a demanda de Roraima”. Bernardo Folly salientou que a obra só será viável com a interligação de Roraima ao restante do pais, devendo haver uma redução no valor da energia produzida no estado A nossa equipe procurou falar com o ICMBio - Instituto Chico Mendes de Defesa da Biodiversidade para buscar um posicionamento da instituição sobre o tema. por meio de nota via- e-mail, fomos informados de que o processo ainda está em análise no ICMBio, visto os potenciais impactos no Parque Nacional do Viruá e na Estação Ecológica do Niquiá, de modo que não há ainda conclusão de parecer (favorável ou contra). Neste caso, a análise do ICMBio se dará apenas sobre os potenciais impactos nas UCs. Recentemente o Instituto lançou um estudo chamado Plano de Redução de Impactos de Hidrelétricas sobre a Biodiversidade na Amazônia (PRIM-HA), desenvolvidos com o apoio do Projeto Pró-Espécies: Todos contra a extinção, do Ministério do Meio Ambiente e da Mudança Climática. A iniciativa visa gerar cenários compatíveis entre a conservação da biodiversidade e o desenvolvimento de empreendimentos hidrelétricos na região amazônica. O plano viabiliza a manutenção do ecossistema e das espécies, a construção e operação de empreendimentos e atividades na localidade. A ferramenta, que conta também com a verificação espacial dos empreendimentos hidrelétricos existentes - mapeamento obtido por meio da realização de imagens de satélite e base de dados oficiais - foi idealizada após a constatação de que a produção de energia proveniente de hidrelétricas é a principal ameaça à biodiversidade amazônica.