Estado de Roraima é um dos mais perigosos para as mulheres, revelam pesquisas
Está cada vez mais perigoso ser mulher no estado de Roraima, o número de mortes, estupro e outras violências aumenta a cada dia. Por: Fernanda Vasconcelos Foto: Fernanda Vasconcelos “O primeiro abuso eu tinha apenas 6 anos de idade, durou tantos anos que em certo momento eu já achava “normal”, o sentimento de nojo por mim mesma era normal, o sentimento de perda do meu próprio corpo era normal. Aos 9 anos eu já não tinha mais vontade de viver, sentia que aquele era o único tipo de “amor” que eu merecia. É duro, é duro ser uma criança e ter tantos pensamentos ruins sobre você mesma.” Esse é um trecho do relato de *Aline, vítima de abuso sexual e parte das estatísticas que só vem crescendo no estado de Roraima. Segundo dados do Anuário da Segurança Pública referentes ao ano de 2021, Roraima lidera a taxa de homicídios de mulheres, sendo 8,3 casos para cada 100 mil habitantes. Além disso, o estado também apresentou aumento no número de casos de violência doméstica, tendo a segunda maior taxa do país e quase dobrou o número de estupro de vulnerável em comparação a 2020. Em Roraima o aumento de casos de violência doméstica foi de 57% comparado ao ano de 2020, quando foram registrados 4.366 ocorrências em que a vítima era mulher, estima-se que o número seja ainda maior de vítimas que não denunciaram. Apesar dos altos números, os dois últimos anos não foram os piores, em 2018 o estado de Roraima esteve em primeiro lugar no ranking como o estado mais violento para mulheres, onde foram registrados 4.682 casos. Segundo a delegada da Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (Deam), Verlânia Silva de Assis, apesar de muito difícil definir exatamente quais os motivos de um índice tão alto de violência contra a mulher no estado, alguns fatores podem ser mais agravantes para esse tipo de crime como a dependência química, o álcool e situações abusivas dentro dos relacionamentos onde o agressor tenta manter um controle em relação à vítima e o ciúmes. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA A violência doméstica sempre esteve presente nos lares brasileiros, até o ano de 2006 não havia nenhuma lei específica para a proteção de mulheres vítimas de qualquer tipo de violência. Em um país conservador onde por muitos anos a mulher foi considerada “propriedade” do marido, era comum que mulheres agredidas não buscassem ajuda e ao buscar ouvissem a fatídica frase “Em briga de marido e mulher, não se mete a colher” deixando a mulher condicionada ao local de vítima. Foi assim na vida de Lucimar Santana, a dona de casa viveu durante anos em um relacionamento abusivo no qual diversas vezes temeu por sua vida. “No meu primeiro dia das mães ele escondeu a minha filha, eu fiquei desesperada e fui até a polícia, na frente dos policiais como ele era professor de copeira, ele me deu uma rasteira, me derrubou e os policiais disseram (para mim), ‘Vá, vá cuidar da sua filha’”. Relatou. Lucimar ainda relata que quando aconteciam os episódios de agressão ela ligava para a polícia e a resposta que ouvia era “Nós não podemos fazer nada, não podemos entrar nas casas.”. Assim como em outros casos, o marido de Lucimar era o provedor da casa e por não ter estudos ou emprego e nenhuma ajuda do estado, permaneceu no casamento temendo por sua vida e pela dos filhos. “Eu não saia de casa para que não acontecesse com os meus filhos o que acontecia comigo, eu não tinha estudos então tinha que ficar. Todos os fins de semana eram uma tortura, ele saia para beber na sexta e só voltava no domingo, eu tinha medo de ele chegar e me colocar para correr.” Disse ela. Lucimar só pôde ser livre da violência que sofria no ano de 1999, quando seu parceiro morreu, apesar da perda dolorosa, também pôde sentir alívio. “O importante é que eu sobrevivi… Agora nos finais de semana eu não tenho mais que me preocupar.” Finalizou Lucimar. Assista o relato completo de Lucimar abaixo. Em pesquisa feita pelo IPEA sobre a relação entre a violência doméstica e o trabalho da mulher percebeu-se que mulheres que ficam expostas a situações de violência tem sua saúde mental afetada. A pesquisa demonstrou que ansiedade, depressão, transtorno pós-traumático e baixa autoestima são alguns dos problemas que essas mulheres têm mais probabilidade de apresentar do que mulheres que não estiveram nas mesmas condições. Além dos problemas psicológicos, essas mulheres também ficam mais suscetíveis a sofrer abortos e adquirir Ist’s. Abuso Sexual A cada dez minutos, uma mulher foi vítima de estupro no Brasil apenas no ano de 2021 considerando apenas os casos que chegaram até a justiça, é o que revela o estudo realizado pelo Forúm Brasileiro de Segurança Pública . Apesar da queda que houve nos anos de 2019 e 2020, o número voltou a subir em 2021 tendo um aumento de 3,7%, ao todo foram 56.098 denúncias de estupro e o estado de Roraima esteve liderando a taxa com 154,6 estupros para cada 100 mil mulheres, quase três vezes mais que a média nacional de 51,8%. Com lágrimas nos olhos, a jovem *Aline relata os momentos difíceis que viveu durante anos de abuso. “Ele era uma pessoa acima das suspeitas, amigo da família e simpático com todos, até hoje as pessoas têm essa visão dele, eu nunca consegui dizer nada para pessoas próximas a ele, quando penso sobre isso me dói saber que para ele não foi nada. Me pergunto por que preciso lidar por anos com uma dor que outra pessoa me causou enquanto ele vive perfeitamente bem?” Questiona. Uma dos maiores problemas do abuso sexual está na forma como a vítima é tratada ao relatar o que viveu, quando o abusador possui algum tipo de influência a validação da vitima se torna ainda mais difícil e por esse motivo muitas mulheres como *Aline acabam desistindo de denunciar e sofrem com os traumas dessa violência. “Para mim ainda é difícil e desconfortável estar em um ambiente cercado por homens, eu me sinto ansiosa, com medo, aflita, me dá enjoo imaginar algo assim acontecendo de novo pois a última vez que tive meu corpo violado eu já tinha 19 anos, não era o mesmo cara mas não consegui me defender, foi como se tivesse 6 anos de novo e me sinto culpada como se não ter feito nada aos 19 fosse como se eu não tivesse fazendo nada pela *Aline de 6 anos.” Relata *Aline. É comum que em um abuso ou qualquer outra forma de violência a vítima se sinta culpada pelas ações do abusador, é o que explica a psicóloga Gabriella Matias “Toda vítima acaba se culpando pela situação porque ela não consegue absorver o fato de uma outra pessoa ter a violado e que aquilo ela pode ser responsável, é o que acontece muitas vezes as vítimas são culpabilizadas pela sociedade." Gabriela chama atenção também para as possíveis consequências para mulheres que foram vítimas desse tipo de crime. “Ai entra a dependência emocional, essa pessoa pode se tornar um abusador também, infelizmente. Nós temos casos de mulheres que sofreram abuso na infância e elas acabam sendo permissivas com os filhos e acabam fazendo desses filhos vítimas também. As consequências são catastróficas para a formação desse indivíduo.” Apenas no ano de 2013 foi sancionada a Lei do Minuto Seguinte que tem como objetivo dar à vítima de abuso o atendimento médico necessário, imediato e gratuito através do SUS, onde a vítima não precisa estar com boletim de ocorrência para ser atendida, a lei garante que apenas a palavra da vítima basta. Outras garantias são o atendimento psicológico, social, exames preventivos e o fornecimento de informações sobre os direitos legais da vítima. Violência psicológica e perseguição Em 2021 o Anuário da Segurança Pública divulgou pela primeira vez dados sobre casos de violência psicológica e stalking. Isto se deve ao fato de que apenas no ano de 2021 os dois crimes foram inseridos no Código Penal. Em Roraima houveram 3.013 casos denunciados de violência psicológica e 49 casos de stalking (perseguição), uma vitória para mulheres como *Jessica, que foi vítima de perseguição e chegava a receber 300 ligações por dia do stalker. *Jessica revelou que durante 3 anos o homem a perseguiu a ponto de desestabilizá-la em um desses momentos ela teve uma crise de ansiedade em seu carro e acabou causando um acidente de trânsito, além de quase perder o emprego por conta do enorme fluxo de ligações. “O mais frustrante era saber que eu convivi com aquela pessoa, ele morou comigo e eu implorava pelo amor de Deus para ele me deixar em paz, que ele ia acabar fazendo eu fazer uma besteira comigo porque eu não estava mais aguentando aquilo e que por tudo que a gente tinha vivido, eu não merecia uma coisa daquelas.” Relatou a vítima. Em outro momento da entrevista *Jessica que já estava abalada relatou a luta que foi para convencer a própria polícia de que precisava de ajuda, já que o caso não era considerado como crime houve relutância por parte dos agentes e até de advogadas em atendê-la. “Uma delegada não quis que eu fizesse lá (o boletim naquela delegacia) e eu falei que era lá porquê ele ligava gemendo, se masturbando e… Eu consigo sentir ainda, fazem 3 anos que me livrei disso e eu ainda sinto a mesma aflição que sentia na época.” Assim como em outros casos de violência *Jessica teve dificuldades de relatar para outras pessoas e encontrou uma polícia despreparada para lidar com esse tipo de violência, um dos conselhos que a vítima recebia era que trocasse de número ou deixasse o celular no silencioso, tais conselhos trouxeram para ela a sensação de culpa, de que ela precisava se esconder e estava sendo penalizada pelas ações de seu agressor ao invés do contrario. “Eu que tinha contato com pessoas de dentro (da polícia) e ainda assim foi difícil, imagina para as pessoas que não tem. Eu sentia como se fosse eu quem estivesse cometendo um delito.” Disse *Jessica. No caso de *Jessica a polícia não pôde fazer nada mesmo após descobrir quem era o stalker, foi preciso que a vítima procurasse formas de se defender sozinha. Hoje o perseguidor de *Jessica continua livre, para ele é vida normal e para ela sobraram os traumas, as consultas e remédios psiquiátricos. Ouça a entrevista completa de *Jessica abaixo. Ao fim da entrevista, ¨*Jessica precisou ir às pressas para casa, em relato ela disse que após tantos anos achou que havia superado, mas ao falar do assunto de forma tão detalhada, as consequências do trauma vieram a tona fazendo com que tivesse enjoos, tremedeiras e vômito. Foto: Fernanda Vasconcelos Segundo a delegada da Deam, Verlânia Silva de Assis, o estado de Roraima hoje conta com uma rede de amparo eficaz na proteção de mulheres vítimas de violência. “O estado de Roraima tem a Casa da Mulher Brasileira implantada que oferece desde uma assistência psicossocial, com assistentes sociais e psicólogos e acolhimento humanitário para que a vítima possa se sentir segura para relatar a violência." Confira a entrevista completa da delegada abaixo. Rede de apoio e proteção O amparo à mulher vítima de violência é algo cada vez mais presente, sua importância é indiscutível e essa rede de amparo começa desde as leis que as protegem até grupos em redes sociais formados por mulheres em um ambiente que podem contar suas histórias sem julgamentos. É o caso do perfil no Instagram chamado “Mas ele nunca me bateu”, criado por uma mulher que conseguiu se livrar da violência que sofria e hoje recebe e compartilha histórias de mulheres de todo o país. O perfil conta com mais de 302 mil seguidores e além dos relatos também compartilha mensagens positivas, notícias e ajuda outras mulheres a encontrarem forças e meios para sair do ciclo da violência. "Estávamos em uma praça, e do nada, ele me deu um tapa na cara dizendo que foi de ódio, por lembrar que eu já tinha ficado com outros caras antes dele." Relato de uma das mulheres que foi vítima de violência. Foto; Divulgação/ Instagram Grande parte dos relatos na página são de mulheres que não fazem mais parte do ciclo de violência e compartilham suas histórias para que outras mulheres tenham a esperança e motivação de que é possível sair de situações de abuso. Em Roraima o Numurr (Núcleo de Mulheres de Roraima), tem desempenhado um papel importante no apoio, fortalecimento e empoderamento de mulheres realizando ações, eventos e rodas de conversa com o objetivo de tornar a mulher protagonista de sua própria história. “Nosso trabalho é voltado à prevenção e sensibilização do fenômeno da violência de gênero, e consequentemente da violência doméstica. Nas rodas de conversas, seminários e encontros promovidos pelo Numurr orientamos as mulheres sobre os seus direitos e principalmente como acessá-los.” Andréa Vasconcelos, mestre em sociologia, graduada em Direito. Atua na defesa dos DH das mulheres na Amazônia. Além do apoio e empoderamento que auxiliam no bem estar psicológico dessas mulheres, na última década foram implementadas leis de proteção que tem ajudado essas vítimas e trabalhado para evitar que histórias como a de Lucimar, Aline e Jessica se repitam. Denúncia Foto: Fernanda Vasconcelos O primeiro passo para acabar com a violência é denunciar, hoje qualquer pessoa que presencie o crime de violência contra a mulher pode efetuar a denúncia não apenas a vítima. Para casos em que a violência esteja acontecendo naquele momento e a mulher precise de amparo imediato, a denúncia é feita pelo número 190. Em casos não emergenciais, onde a violência não está acontecendo no momento mas a mulher está em um relacionamento abusivo ou vivendo em um ciclo de violência a denúncia pode ser feita de forma anônima pelo número 180 ou 100 que são canais de orientação para mulheres vítimas ou para a pessoa que está tentando ajudar. Além de ligação a denúncia também pode ser feita pelo aplicativo de mensagens Telegram, basta digitar na busca #DireitosHumanosBrasil e mandar uma mensagem para a equipe da central de atendimento à mulher. Desde julho de 2020, em um momento de pandemia onde não era possivel sair de casa, foi disponibilizado uma forma de fazer o boletim pela internet, cada estado tem um link próprio, caso você seja de Roraima e precise fazer uma denúncia clique aqui , para que a medida seja efetiva é preciso preencher detalhadamente o boletim de ocorrência. Além de tudo isso, a mulher ainda pode ir até a Casa da Mulher Brasileira, que em Roraima fica localizada na Rua Uraricoera, S/N - São Vincente, Boa Vista, para fazer uma denúncia pessoalmente e receber orientações e ajuda. Os nomes assinalados com asteriscos (*) correspondem à nomes fictícios para preservar a identidade das mulheres