Drama humano envolve famílias Yanomami nas ruas de Boa Vista/RR
Yanomami na feira do produtor, em 22/02/20225 “Não volto. Estão matando” afirma uma das matriarcas dos 3 grupos que somam 40 indígenas da TI Yanomami, especificamente da região do Ajarani, os quais ocupam principalmente o entorno da Feira do Produtor, local considerado pela polícia militar como uma zona vermelha, devido a estruturação de redes criminosas que atuam na comercialização de drogas e prostituição. As cercanias de uma das principais feiras livres de Boa Vista possui indígenas de três comunidades que caminharam e navegaram por vários dias para estarem vulneravelmente sobrevivendo nas ruas. Expostos aos problemas sociais imposto pelo flagelo da dignidade humana. Uma questão fundamental nunca é observada pela administração pública. Qual motivo que esses cidadãos e cidadãs deixam as comunidades Samaúma/Repartimento, Manacapurú e Serrinha para viveram nas ruas? Yanomami deslocando-se na cidade de Boa Vista A tentativa de responder essa questão é fundamental para um efetivo planejamento do cuidado, caso contrário, diárias e mais diárias serão pagas e o ciclo de vulnerabilidade apenas se ampliará. Para o mestre em Antropologia, Amazoner Aruwaq, a única forma de conseguir políticas perenes é construindo propostas de forma coletiva, onde as lideranças indígenas possam ter voz e as comunidades possam ratificar o planejamento. “Qualquer caminho diferente não possibilitará a superação da vulnerabilidade enfrentada por essas vidas humanas, pelo contrário, potencializará martírios coletivos ou pessoais”, afirmou Aruwaq. Esse sofrimento muitas vezes encerra-se com mortes, superlotando a estrutura de refrigeração do IML. O segundo maior grupo que se encontra em Boa Vista, há mais de 30 dias, demonstra uma resiliência preocupante no tocante a percepção da rua como um lugar melhor para sobreviver, a terra homologada. Aqui, o principal grau de vulnerabilidade é das crianças que ficam expostas a todas as barbáries vivenciadas pela situação da degradação humana. Onde, a ação efetiva do Estado é sequestra-las, em nome da proteção proposta pelo ECA, impulsionando um processo de permanência das pessoas nas ruas de nossas cidades, ao longo do centro-sul de nossa BR 174, a espera de seus filhos e filhas. Pensar o problema da situação de rua dos Yanomami, especialmente dos Yawarip do Ajarani, exige a adoção de medidas interfederativas e interinstitucionais. Um primeiro passo seria resolver a bagunça do organograma da Funai, estabelecendo que a instituição local possui a responsabilidade pela condução das políticas públicas, sendo a Frente de Proteção Etnoambiental não uma estrutura a parte da coordenação da Funai local. Esse é um passo importante para começar a transformar a dura e sofrida realidade que parte os Yawarip vive em Roraima. Os problemas que se relacionam com a situação de rua dos Yanomami, em Roraima, são institucionais, culturais, econômicos e sociais. Portanto, a conjugação de esforços integrados que envolvam equipes multidisciplinares é necessária para transformar a atual realidade sócio conjuntural que vivenciamos. Não pode haver em uma perspectiva de proteção de um dos povos mais antigos do mundo a transferência de responsabilidades. É necessário que a sociedade e os poderes constituídos trabalhem, de forma complementar, para que a existência desse povo, não desapareça por meio da indiferença, do preconceito, da bebida alcoólica, das drogas ou simplesmente com uma política errada e criminosa de adoção. Especialistas consultados por essa reportagem que não quiseram se identificar, mas vivem o dia a dia do Yanomami em situação de rua, apontam 5 grandes problemas que norteiam esse processo de circulação e estadias mais prolongadas nas cidades. Dentre eles destacam-se; a) acesso a benefícios sociais; b) Fome; c) Acesso a alimentos mais fáceis de manipulação que os culturalmente utilizados; d) Quadro de atenção à saúde precarizado, destaca-se o alcoolismo e uso de outras drogas; e) ausência de relações efetivas do Estado brasileiro com o território no tocante a perenidade de políticas públicas. Yanomami na feira do produtor Esse quadro geral não se origina atualmente com a disseminação da criminosa ação do garimpo, apesar de esse ter sido essencial para potencializar o deslocamento dos indígenas e a consolidação de uma ação de extermínio de um povo. Os Yanomami da região do Ajarani sofrem uma pressão social e econômica que remonta a construção da BR 210 – ligaria a cidade de Caracaraí (RR), na BR 174, a cidade de São Gabriel da Cachoeira (AM), na BR 307. A realização dessa obra ceifou a vida de muitos Yanomami, o surto de Sarampo em 1978 levou comunidades a perderem cerca de 50% de seus membros, tanto na região do Ajarani, como na do Catrimani. A rua como cama para uma Yanomami Trabalho assalariado, bebidas alcoólicas, drogas, prostituição e assassinatos marcam o encontro dos Yanomami da região do Ajarani, conhecidos como Yawarip - cuja designação não é definida claramente pela linguística. Tradicionalmente esse povo é conhecido pela sua valentia, criando problemas culturais no encontro, de ontem e de hoje, entre a cultura Yawarip e a sociedade cristã/burguesa envolvente. A agressão física é uma forma de solucionar problemas que surgem, portanto, sua efetivação no âmbito das cidades tem levado representantes desse povo a cumprir penas em presídios estaduais, onde condenações são realizadas sem as pessoas nem terem documentos pessoais, demonstrando o efetivo descaso com a Lei e a vida dos Yanomami. Outro fator que gera dor nas famílias Yanomami que circulam pelas nossas cidades, consiste na forma como compreendemos a proteção de nossas crianças e adolescentes. O nosso regramento legal, estabelece padrões e comportamentos a serem seguidos, pelos genitores ou responsáveis. No entanto, podemos apenas subscrever nossas diretrizes a um povo que possui outra relação social com o processo de responsabilidade com crianças e jovens? Porém, a realidade tem levado inúmeras crianças a serem recolhida por representantes do conselho tutelar, bem como, encaminhadas como indigentes do Hospital da Criança à rede de proteção, estruturada por meio de abrigos, mesmo muitos desses pacientes tendo sido removidos de sua comunidade pelo DSEI/YY. Vivemos um problema organizacional do DSEI/YY e do atendimento nos hospitais que precisa ser enfrentado. Primeiro é necessário criar uma cultura de boletins médicos que possam ser repassados às comunidades a cada 15 dias, a fim de evitar o deslocamento de familiares à cidade para ver o doente. Outra questão é o acondicionamento da estrutura logística do hospital a realidade Yanomami. Não tem como querer manter uma pessoa que vive na liberdade da floresta trancada por vários dias, portanto a idealização de áreas com rede, onde se possa fazer comida é uma forma de manter os acompanhantes e doentes no hospital. Esses são olhares humanizados que precisam ser idealizados na saúde pública. A morte de um Yawarip nas cidades e seu sepultamento como indigente são problemas sociais que ampliam as relações desse povo com nossos centros urbanos. Vários momentos distintos, durante um ano, chega a Boa Vista os mesmos núcleos familiares em busca do corpo de parentes para que possam ser “chorados” dentro do território. Recentemente a Funai foi notificada da existência de 7 Yanomami no IML, segundo as informações confirmadas nunca houve resposta por parte da instituição federal. A compreensão desses processos culturais são fundamentais para a formalização de ações do Estado, ou mesmo ao estabelecimento de protocolos que permitam uma ação de cuidado, consequentemente a redução do fluxo de circulação dos Yanomami em direção as nossas cidades. Violência Conflitos voltaram a ser uma realidade na região do Ajarani, envolvendo os Yanomami da Serra da Mocidade e os que residem no vale do Ajarani. São conflitos como esses que levam Cláudia Yanomami afirmar não querer retornar a sua comunidade. “Volto não. Estão matando. Atacando com flecha. Vou ficar aqui”, diz Cláudia. O grupo liderado por ela inclui mais 21 indígenas, sendo cerca de 11 crianças que se encontram pelas ruas de Boa Vista há 5 dias, sobrevivendo de doações, cada vez mais escassas. A Polícia, o Samu e o Conselho Tutelar são as referências do Estado aos Yanomami em situação de rua Os conflitos do território, reproduzem-se na cidade. No último sábado esse grupo protagonizou um confronto interno no bairro aeroporto, resultando em várias pessoas feridas. Esse ciclo de violência é potencializado pelo consumo do álcool (camelinho), conseguido com a venda de latinhas de alumínio ou pequenos serviços braçais, prestados em sua maioria, no entrono ou dentro da feira do produtor. Recorrentemente a polícia e o Samu são chamados para tentar cuidar ou conter os conflitos pessoais que se generalizam entre os membros dos 3 grupos que se encontram nas ruas de Boa Vista. No entanto, a violência efetiva é do Estado brasileiro que não consegue mobilizar nenhuma ação concreta para superar essa política de extermínio de um povo. “É incompreensível vermos um Estado ausente do território. A educação não funciona, os atendimentos da atenção primária estão precarizados e centrados nas UBSI, não há política alguma de sustentabilidade que potencialize a segurança alimentar dessas pessoas, pelo contrário, a fome é uma realidade que cresce a cada dia”, afirmou um dos profissionais escutados. O Estado promove a entrega de cestas básicas, desconexas com a realidade alimentar dos Yanomami, potencializando crises internas em torno do domínio da fonte alimentar. A logística de entrega desse suplemento alimentar é inadequada pois não há rotina estabelecida, muito em virtude do custo operacional e da precariedade de planejamento. É necessário compreender que o financiamento privado e a omissão estatal que potencializou o garimpo dentro da TI Yanomami, desde o ano de 2016, descaracterizou toda a sustentabilidade ambiental de caça e pesca existente nas localidades, dificultando o acesso dos povos Yanomami a sua dieta alimentar culturalmente estabelecida. A distribuição de sardinhas em lata – que enchem o território de resíduos sólidos – resolve uma necessidade urgente, mas não pode se consolidar, 2 anos após o início da operação, na única perspectiva de ação. Na região do Ajarani, por exemplo, a pressão do garimpo era pequena, por isso o desenvolvimento de ações que promovesse o retorno ao território poderia estar sendo implementado. Pelo contrário, temos é o aumento da circulação das famílias Yawarip que se espelham pelas localidades de Caracaraí, Vila Campos Novos (Iracema), Vilas Apiaú e Sumaúma e a sede de Mucajaí, alémda capital. Por fim, temos Boa Vista concentrando as principais sedes das entidades referenciais aos Yanomami, especialmente a Frente de Proteção Etnoambiental da TI Yanomami. Política de Proteção “A Funai considera "de recente contato" aqueles povos ou grupos indígenas que mantêm relações de contato permanente e/ou intermitente com segmentos da sociedade nacional e que, independentemente do tempo de contato, apresentam singularidades em sua relação com a sociedade nacional e seletividade (autonomia) na incorporação de bens e serviços. São, portanto, grupos que mantêm fortalecidas suas formas de organização social e suas dinâmicas coletivas próprias, e que definem sua relação com o Estado e a sociedade nacional com alto grau de autonomia.” O site da entidade afirma que “o desafio da Funai no momento é avançar na consolidação de uma política de proteção para povos indígenas de recente contato, coordenando e articulando ações – junto aos povos indígenas de recente contato, órgãos públicos e instituições da sociedade civil – para mitigar a situação de vulnerabilidade a que estão expostos e assegurar as condições necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Nesse contexto, não é compreensível que a retórica adotada pela coordenação da Frente de Proteção Etnoambiental da TI Yanomami afirme ter responsabilidade exclusivamente com os indígenas que se encontram no território. Essa posição da entidade, externada em reunião, demonstra o grave problema que se enfrenta na gestão do cuidado com esses povos, especialmente em relação aos moradores da região do Ajarani, que possuem as crianças da segunda metade da década de 1970, liderando grupos que circulam pelos núcleos urbanos hoje. As crianças de hoje, são formadas culturalmente nas ruas das cidades, tendo acesso a todas as mazelas sociais que atingem indígenas e não-indígenas em vulnerabilidade humana. A prostituição e o consumo de drogas, especialmente o crack, é uma realidade que precisa ser enfrentada de forma emergencial. Para uma das pessoas entrevistadas, “enquanto a Funai tratar essa situação de vulnerabilidade dessa forma, comprometerá a vida desses Yanomami, sendo sócia da política de extermínio evidenciada pelo completo descaso público com a vida desses indígenas. "Quando vivenciei no governo Bolsonaro a política de morte direcionada ao povo Yanomami, trabalhei para derrubar o governo nas urnas e nas ruas. Agora, com o governo Lula, retirando a bilionária operação de combate ao garimpo, nenhuma outra ação efetiva foi idealizada de forma concreta. Chego à conclusão de que é uma política de extermínio, sustentada na busca exploração econômica da região”, afirmou uma fonte que não quis se identificar. Escutar é o caminho do Estado Mestre em Antropologia Amazoner Aruwaq Para o mestre em antropologia, Amazoner Aruwaq da etnia Wapichana, a partir da demarcação da TI Yanomami estrutura-se na borda, especialmente na região do Ajarani, um ciclo econômico com fazendeiros, comerciantes, madeireiros e grileiros que potencializam o processo de desestruturação social. A apropriação do trabalho, pelos Yanomami, nas fazendas para acessarem mercadorias e alimentos, consiste em um dos processos mais sólidos de desorganização das comunidades, os atrativos remuneratórios iniciados com a abertura da estrada permaneceram na região, levando os indígenas a deixarem temporariamente ou definitivamente suas comunidades. Essa relação empregatícia que em muitos casos assemelha-se ao conceito de análogo a escravidão, transformam as fazendas na principal porta de acesso a bebida alcoólica, impactando diretamente as comunidades, especialmente em virtude da ampliação dos conflitos. Esse processo de desorganização social e cultural atinge de forma generalizada toda uma comunidade, nas cidades inclusive crianças fazem uso de álcool. A culpa deve ser direcionada aos genitores? Não. “Pois, o flagelo vivenciado é apenas observado há décadas sem nenhuma intervenção concreta dos poderes públicos. Muitas vezes espasmos administrativos promovem iniciativas que se esvaem, por não terem sido construídas coletivamente com os Yawarip, mas nos escritórios dos governos ou agências humanitárias”, disse Aruwaq. A chegada dos garimpeiros, madeireiros e grileiros na década de 1980 potencializa o processo de ameaça e pressão ao sistema social e econômico. Afetando diretamente a base de organização Yanomami. Situação que se repete a partir de 2016 em grande escala, pois a omissãodo Estado potencializou o crime. "Estima-se que o território Yanomami chegou a ter cerca de 20 mil garimpeiros espalhados em uma vasta área da TI localizada em Roraima", afirmou Aruwaq. Essa realidade também impõe a necessidade de movimentações dos indígenas que veem nos centros urbanos uma saída ao quadro de fome e desnutrição que havia se estruturado no território, fruto de uma ação planejada, financiada e apoiada por vários segmentos públicos e privados do país, dentre eles facções criminosas que passaram a controlar parte da TI Yanomami. Aruwaq, citando Ailton Krenak, afirma que o centro do protagonismo deve ser exercido pelos indígenas, qualquer outro caminho consolida a omissão do Estado brasileiro que adota uma postura de tutela, silenciamento e exclusão das vozes indígenas dos espaços de decisão. Especialmente com a abertura da Amazônia para os grandes empreendimentos, para o grande capital que exige estradas, hidrelétricas e força humana de trabalho importada de outras regiões brasileiras, para destruir pessoas e o meio ambiente, em nome de um lucro cada vez mais sedento de sangue e destruição. "A estruturação econômica alienígena impacta a vida dos Yanomami com epidemias, contaminação química de mananciais e peixes, afastamento das caças e destruição ambiental. Quando se pensa na perspectiva das comunidades do Ajarani, devemos vislumbrar o processo de contato permanente, entre indígenas e não-indígenas, pela facilidade de entrada e saída do território, disse Aruwaq. A pressão criada por assentamentos da reforma agrária que agora se transformam em áreas de grandes fazendas, com donos exógenos de Roraima, retoma conflitos encerrados em 2012 quando da conclusão da homologação da TI Yanomami, com as últimas desintrusões realizadas em 2013. Já na década de 1970, os Yanomami da região do Ajarani e Catrimani começam a acessar as vilas e sedes municipais para comercializam seus produtos oriundos de sua tecnologia de fibras, processo que permite o acesso as mercadorias dos não indígenas. “Os Yanomami nunca foram bem-vindos nesses ambientes, em virtude do Estado de Roraima ter uma posição majoritária anti-indígena, com uma política partidária, em grande maioria, estruturada contra os direitos indígenas, a demarcação de terras e suas formas de organização. Essa tensão contra a mobilidade dos Yanomami ainda permanece como uma prática nas cidades. "Os Yanomami caminham ou mesmo navegam dias e semanas para acessar os centros urbanos, mas nunca foram bem recebidos pela maioria de nosso povo. A relação estabelecida é de aversão e discriminação. Campanhas foram feitas contra a presença dos Yanomami no contexto urbano. Pode-se inclusive apontar que é na prática uma política de higienização social, pensando nas perspectivas das relações estabelecidas entre a sociedade envolvente e os Yanomami, afirmou Aruwaq. Como pensar os corpos Yanomami que se encontram sem segurança, sem aparato algum de proteção? Os corpos que não são restituídos às suas famílias, confrontando desta forma referências culturais fundamentais a existência Yanomami. Mortos ou trancafiados em casas de detenção e abrigos de proteção o povo Yanomami ver suas referências a continuidade de seu povo em um limiar aterrorizador que promove o desaparecimento de culturas. Essa premissa não é diferente dos processos coloniais implementados, nesta região, a partir do século XVIII. Para Aruwaq é necessário pensar políticas ou protocolos que possam ser implementados, trazendo uma solução a partir da perspectiva da cultura e da terra indígena. Pensar nesse processo exige levar em consideração uma proposta multidisciplinar que permita a identificação de problemas e a definição de estratégias, por meio de encontros nas comunidades, a fim de que esse processo atenda as demandas a partir das perspectivas indígena e transforme o território novamente em uma referência sociológica.
