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“A falta de comida é doença do garimpo”, diz Davi Kopenawa Yanomami

Em entrevista ao Valor Econômico o líder Yanomami faz um alerta: "Sem índio, vocês vão sofrer também. Índio não vai morrer sozinho”. Por Daniela Chiaretti. Davi Kopenawa Yanomami, o xamã que dedica a vida à luta pela preservação de seu povo e do maior território indígena do país, está de luto. Mais de 570 crianças Yanomami morreram em consequência da contaminação por mercúrio do garimpo ilegal, de subnutrição, diarreia, verminoses, doenças respiratórias e malária nos últimos quatro anos. “Minha esperança é o presidente Lula, que, acho, está preparando o plano de retirada dos garimpeiros da Terra Yanomami. “Tem que ser urgente. A doença não demora. A fome também não” - Davi Kopenawa Yanomami. Davi Yanomami deixa claro que a desnutrição é consequência da invasão de garimpeiros, que contamina rios com mercúrio e prejudica a pesca. O barulho dos aviões e das máquinas, e a violência do garimpo, espanta a caça e dificulta a coleta de alimentos nas roças indígenas. “A falta de comida é doença do garimpo”, resume, indicando que o modo de vida Yanomami está sendo drasticamente afetado. “A fome não chega sozinha. A fome chega com a destruição”, diz. “Eles são muitos, nós somos poucos. Morreu metade do meu povo”, conta, referindo-se ao impacto de invasões passadas. Davi diz que o problema não é de hoje, mas se agravou nos últimos quatro anos. “O governo Jair Bolsonaro não quis tirar, e senadores, deputados, ficaram junto com os garimpeiros”, diz. “Esse garimpo que está na terra Yanomami é obra do governo”. “O rio é o caminho do garimpo”, diz o xamã, indicando os lugares onde a ilegalidade está mais próxima. “Passam muitas canoas, mercadoria, gasolina, comida, bebida. Entra tudo na balsa, bebidas, drogas. Foram colocando barracas na beira do rio e estragou tudo. Não é como antigamente. Parece um lixo”, resume, dizendo que o garimpo de hoje “é de gente grande, com recursos”. Davi denuncia ainda a presença do tráfico e a violência sexual com mulheres indígenas. “É pouco índio que está protegendo a terra para o mundo inteiro. Sem índio, vocês vão sofrer também”, alerta. “Índio não vai morrer sozinho. Vamos morrer junto com a água, floresta, a cultura", alertou Davi Yanomami, 66 anos, em entrevista ao Valor pouco antes de embarcar aos Estados Unidos, a convite da Fundação Cartier, para a abertura da exposição “The Yanomami Struggle”, no The Shed, em Nova York. Com curadoria do Instituto Moreira Salles, será a maior exposição sobre o trabalho e a amizade da artista Claudia Andujar com os Yanomami. “Estou preparado para falar sobre o que está acontecendo com meu povo. Muita gente quer ouvir a minha fala”, diz Davi. Ele estará com o antropólogo Bruce Albert, com quem escreveu “A Queda do Céu”. A estadia começa pela Universidade de Princeton. Lá, serão recebidos pelo presidente Christopher L. Eisgruber e diretores de vários departamentos e institutos, como o Brazil Lab. Povo da cidade O homem da cidade é diferente. Não conhece o meu povo. São mais de 522 anos que o homem da cidade vem invadindo, estragando nossas terras e comunidades, estragando a saúde da floresta. Quando eu era pequeno, com 3 ou 4 anos, isso já aconteceu. Eles tomaram as nossas terras e continuam roubando. São acostumados a maltratar o povo da floresta. Nós estamos ocupando nosso lugar, que é bonito, tem água limpa, montanhas, mas eles precisam usar as madeiras, a biopirataria. Impacto da estrada Em 1973, passou estrada dentro da floresta Yanomami (a BR-210, conhecida por Perimetral Norte). Derrubaram milhares de árvores e estragaram igarapés e rios. Foi o caminho dos invasores, o caminho da entrada da doença, da gripe, da bebida. Homem da cidade que vem andando e não respeita. Ele vai cortando madeira, fazendo desmatamento, e vai se interessando na nossa terra, que é um lugar bonito. Isso continua se repetindo. Agora abriram estrada nova, em dois lugares na terra indígena. Não podia acontecer isso. Fizeram a estrada para transportar ouro, madeira. O pequeno não faz isso. Só quem tem muito dinheiro na mão consegue destruir. Sarampo e Malária Quando entrou a estrada, entrou o sarampo. Em 1975-76, o sarampo matou meus parentes no Catrimani (nome de rio e região em Roraima), Ajarani (rio em Roraima), Maturacá (comunidade no Amazonas). Nesse tempo o meu povo era numeroso, tinha muitos Yanomami. Aí continuaram maltratando. Entraram os invasores, que se chamam garimpeiros. Não tem o porco que cria no campo, que fica fazendo buraco, procurando? Os homens garimpeiros são assim. Procuram pedras preciosas, diamante, cassiterita e ouro. Pegam e vendem na cidade. Em 1986, entrou outro garimpo muito forte. Eram 40 mil garimpeiros que estragaram nossos rios, nosso roçado e nossa saúde. Demorou um pouco e começou a entrar a doença que chama malária. O homem da cidade entra contaminado, carrega as doenças no corpo e fica transmitindo. Foi muito forte. Eles são muitos, nós somos poucos, e poucos parceiros da cidade. Morreu metade do meu povo. Morreu mulher, idoso, criança, moça. Foi durante 1986 e 91 e 92. Eles entram de qualquer jeito. Não ficam com pena. Não gostam de índio. Poucas pessoas gostam! Território de papel Depois os garimpeiros foram retirados pelo governo e a Terra Yanomami foi homologada e demarcada. Nossas terras estão demarcadas, mas não estão respeitando. Governo homologou no papel e pronto, não garantiu. E garimpeiro entrou de novo. Eu, com meu grupo e meu filho (Dário Yanomami), e a Hutukara Associação Yanomami começamos lutando. Denunciando, mandando documento para o Ministério Público e avisando, “olha, os garimpeiros estão entrando. O governo tem que tirar de novo. Senão, vai aumentar muito”. Foi assim em 2014, 15, 16, 17, 18. Hoje, 2023, os garimpeiros estão lá. Nunca saíram. Funai A Funai, que é fundação para proteger os índios, enfraqueceu. O governo Bolsonaro estragou a Funai, que nos protegia. E então aconteceu isso. No ano passado, em 2022, começou a sair a notícia (da situação dos Yanomami) na televisão, no jornal. E nós lutando, denunciando. Mas o povo da cidade não se mexeu, não acreditou. Jair Bolsonaro não queria que o povo da cidade se mexesse. Deixaram acontecer. Esconderam que estavam maltratando os Yanomami, que fomos ficando doentes, Yanomami morrendo, criança maltratada. O governo ficou na contramão. Caminho do garimpo Eu estou na comunidade Watoriki, junto com meu povo, não vou abandonar. A comunidade Watoriki fica longe do garimpo. O garimpo fica mais perto do rio Uraricoera. Ali é o caminho dos garimpeiros. Passam muitas canoas, mercadoria, gasolina, comida, bebida. Entra tudo na balsa. Foram colocando barracas na beira do rio e estragou tudo. O rio Mucajaí, acabou (garimpeiros fizeram uma mudança no trajeto do rio). Não é como antigamente. Parece um lixo. Quando chove, a água fica parada. Cria mosquito e vem doença. Jogo político Na cabeceira do Uraricoera está muito feio. Aumentou muito o número de invasores. Para mim são 70 mil garimpeiros que estão na Terra Yanomami. Muito avião que vem, helicópteros, e armas de fogo. Entrou tudo, a bebida e a droga. E nós lutando, a gente pedindo. O governo Jair Bolsonaro não quis tirar, e senadores, deputados, ficaram junto com os garimpeiros. Eles queriam acabar com o nosso território Yanomami. Deixar a gente morrer e depois pegar o território, esse é o jogo do político. Esse garimpo que está na terra Yanomami é obra do governo. Morte e Luto Começaram a morrer as nossas mulheres. Quando pai e mãe morrem, a criança fica doente, não sabe procurar comida. Não se levanta. As crianças estão doentes porque o garimpo está perto das comunidades e os pais não têm como pescar. Não tem peixe, garimpo mata tudo. Garimpo, dentro da Terra Yanomami, é muito forte para nós. Estou muito chateado e bravo. A minha alma, junto com minha Mãe Terra, está de luto por causa dos nossos filhos. Não tem mais remédio, não tem mais roçado para coletar comida. A responsabilidade é do governo. Governo tem dever de cuidar do povo Yanomami. Garimpo de hoje O garimpo hoje é diferente. Tem apoio de gente grande, gente que tem bastante dinheiro. Eu sou ‘sonhador’, sou pajé da minha comunidade. Estou sonhando (visualizando) que estrangeiro está negociando com a troca de ouro. Quem está nos matando é o povo de fora. Senadores, deputados e governadores, eles são culpados. O dinheiro está matando a floresta, os rios e o ambiente. Tem muito traficante. Em 2021 atiraram numa comunidade. É por isso que estavam escondendo, deixando os Yanomami morrer, e ficaram calados. Mas agora vocês estão ouvindo e ficaram preocupados. O presidente Lula, que também sofreu, foi preso, prometeu tirar todos os garimpeiros da Terra Yanomami. A minha esperança é essa. Acho que Lula está preparando o plano de retirada dos 70 mil garimpeiros da Terra Yanomami. Tem que ser urgente. A doença não demora, fome também não. Estou esperando Lula preparar a Polícia Federal, o Exército, o Ibama e todos que estão querendo salvar o povo Yanomami. Não podemos morrer todos. Queremos que o governo tome providências urgentes esse ano. Essa é a minha fala. Coronavírus Em 2020, aconteceu a doença que matou tantos do povo da cidade e que se chama coronavírus. Na língua Yanomami é um morcegão, um espírito ruim para todo mundo, não só para o índio. A doença atacou e matou muita gente. Esse governo que estava não cuidou de vocês, não nos cuidou, não cuidou da floresta, nem da Mãe Terra. A doença não vai acabar. Está no mundo inteiro. Vai e volta. Na Terra Yanomami está muito ruim. Não tem remédio nem médico. Médico não quer trabalhar na floresta, só quer trabalhar na cidade. E a falta de comida é doença do garimpo, porque o garimpo ficou perto, na beira do rio. Viu o buraco lá na Serra Pelada? E a barragem de Belo Monte também matou o meio ambiente. Será que Belo Monte está trazendo benefício? Isso não funciona. Só traz doença, problema, briga, poluição. A Terra não vai curar, a máquina deixou um buraco. Garimpo é como leishmaniose. Nunca vai sarar, a doença continua. Se o governo federal e os médicos não cuidarem das minhas crianças, vão acabar morrendo. Eu não quero que morra todo mundo. O garimpo está mudando a nossa cabeça. A cultura e o pensamento do não-indígena são muito fortes para nós . Medidas emergenciais O nosso roçado é pequeno. Fica todo mundo comendo macaxeira, banana, cará e acaba. O garimpo continua lá e os parentes que estão no Uraricoera, rio Apiaú, no Ato Catrimani, ficaram envolvidos com eles. Garimpeiro estava dando resto de comida para eles. O povo da cidade está falando que a criança Yanomami está morrendo de fome. Não é isso. Eu, Davi, nunca morri de fome. Foi o garimpo que deixou muita coisa ruim nas nossas comunidades. Já morreram 567 crianças. Outros estão se aguentando para não morrer. Vocês, que são nossos parceiros, se são verdadeiros brasileiros, podem nos ajudar. Nós precisamos . O governo precisa pensar em cesta básica para quem está com fome. Mas cesta básica não vai curar: precisamos de machado e anzol para pegar alimento. O roçado é mais forte que a cesta básica. Não vamos morrer sozinhos! Muitos querem ouvir minha fala. Vou aproveitar a oportunidade que estou indo para os Estados Unidos e estou preparado. Tem muita gente querendo ouvir a minha fala. Vou contar tudo o que aconteceu na Terra Yanomami com as crianças, netos, primas, irmãos que já faleceram e outros que ficam com fome. A fome não chega sozinha. A fome chega com o garimpo, com a destruição. Se eu tenho esperança? Meu amigo presidente Lula vai salvar o nosso povo Yanomami e os outros também, os Munduruku, os Caiapó. É pouco índio que está protegendo a terra para o mundo inteiro. Sem índio, vocês vão sofrer também. A doença vai voltar e começar na cidade, mesma coisa que está matando primeiro o povo indígena. Índio não vai morrer sozinho. Vamos morrer junto com a água, floresta, a cultura. As crianças Yanomami O garimpeiro que fica perto da comunidade está usando a nossas mulheres. Já tem filhos misturados, e isso não é bom. As nossas mulheres estão doentes. A doença fica nas crianças que estão na barriga das mulheres. Crianças Yanomami estão nascendo pequenas. É a doença transmitida pelo garimpeiro que usa mercúrio. Está acontecendo isso e estamos com medo. Estou preocupado com as nossas crianças indígenas que nascem na cidade, e a mulher da cidade que não tem filho está adotando. Isso não pode. A doença está toda espalhada e o problema está aumentando muito. Não queremos perder o lugar onde nascemos e criamos os nossos filhos. Quem matou o meio ambiente e estragou o Palácio, o Congresso Nacional, será que são bons? Precisa botar na cadeia para pagar erro! Fonte: Valor Econômico .

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