Prédios do Teatro Carlos Gomes, Museu Integrado e Casa da Cultura estão abandonados há pelo menos 15 anos. Governo do estado afirma haver planos de reforma. Prédios do Teatro Carlos Gomes, Museu Integrado e Casa da Cultura estão abandonados há pelo menos 15 anos. Governo do estado afirma haver planos de reforma.
Por: Caíque Rodrigues, Ruan Carneiro, Yara Ramalho e Vanessa Fernandes.
Reportagem produzida na disciplina de Redação Jornalística IV
A fachada com pintura descascada e o espaço ocupado por poeira, mato e lixo, pouco lembra os anos dourados do Teatro Carlos Gomes, na área central de Boa Vista. Antes iluminado para apresentações musicais, encenações e até programas de rádio e TV, hoje o palco dá lugar a um cenário de completo abandono. Perto dali, a quase um quilômetro do Teatro, um prédio de dois andares cercado por tapumes - conhecido como “Casa da Cultura” - padece com lodo, sujeira e infiltrações. Mesmo tombado como patrimônio histórico, o local passa despercebido por quem transita na principal região comercial da cidade. E por falar em história, o Museu Integrado de Roraima, no bairro dos Estados, se une aos outros dois prédios em um silencioso pedido de socorro.
Os três prédios estão abandonados entre 10 e 15 anos. Ao longo deste período, artistas, pesquisadores e população se uniram em diversos protestos por intervenção governamental. Desde 2012, o Ministério Público do Estado (MPRR) tem atuado para que a Secretaria de Infraestrutura (Seinf) faça a reforma do Teatro Carlos Gomes e da Casa da Cultura Madre Leotávia Zoller. Os pedidos - mesmo com decisões judiciais favoráveis - não foram cumpridos até o momento.
Nos anos de 2020 e 2021, o atual governo de Roraima fez promessas de revitalização dos três espaços. No caso do Museu, a reforma entraria no projeto de obras dentro do Parque Anauá, onde ele está localizado. Entretanto, não existem sinais de qualquer melhoria em andamento.
A reportagem esteve nos três locais e encontrou fezes, baratas, pedaços de papelão, água suja acumulada e até uma caixa d’água quebrada. Além de virarem abrigo para moradores de rua e usuários de droga, os prédios se tornaram depósitos de lixo. Para todas as pessoas ouvidas para a construção deste texto, o sentimento é único: revolta com o abandono.
Procurada, a Seinf reafirmou ter planos de reforma no Teatro e na Casa da Cultura. Sobre o Museu, disse apenas que o espaço está interditado desde a gestão passada devido à presença de cupins na estrutura. O acervo está em processo de catalogação para ser transferido para a Secretaria de Cultura e Turismo (leia a íntegra no fim da reportagem).
‘Teatro dos Artistas’
Os três prédios citados nesta reportagem carregam não só a história da cultura roraimense como, também, memórias afetivas para o público e artistas que frequentavam e mantinham vivos estes espaços.
O Teatro Carlos Gomes, por exemplo, está totalmente ligado à história da cantora, dançarina e atriz Chirley dos Reis, de 58 anos. Por décadas, o espaço foi o único Teatro de Boa Vista e surgiu de uma pequena sala do então Grupo Escolar Lobo D´Almada. Antes de se tornar um símbolo teatral roraimense, funcionava como sede da Rádio Difusora de Roraima.
Chirley Cantoria, como é conhecida, fazia parte da cena artística roraimense que se construiu nas décadas de 1980 e 1990 e o local – que era carinhosamente chamado pelos promotores culturais de “Teatro dos Artistas” – exercia uma função democrática na arte em Boa Vista, segundo ela.
“Fiz vários espetáculos musicais lá. Eu até fui professora de artes e montei uma peça com meus alunos e foi mostrado no Teatro Carlos Gomes. Eu me descobri como cantora aqui e justamente quando só tinha o Teatro que a gente chamava de ‘Teatro dos artistas’”, relata.
A artista é paraense e morou em Boa Vista durante parte da infância. Ela afirma que não havia nenhum local que permitisse demonstrações artísticas, mas o Teatro Carlos Gomes sempre estava presente, no caso, quando uma rádio funcionava no mesmo prédio.
“O Teatro Carlos Gomes vem de uma história antiga. Quando eu tinha 9 anos, eu ouvia a rádio já lá no Teatro Carlos Gomes. Na época não era Teatro Carlos Gomes, tinha lá uma extensão da Rádio Roraima. Tinha o show do Jaber Xaud e eu lembro com 9 anos que eu ouvia [a música] pelo rádio e eu já queria cantar. Era um programa de calouros, estilo Raul Gil”, relembra.
O programa de Jaber Xaud – locutor que futuramente daria nome ao Teatro do Serviço Social do Comércio (Sesc) em Boa Vista – plantou uma semente do que viria a se tornar a persona Chirley Cantoria na artista, afirma.
“Eu cantava muito quando criança. Eu queria cantar, mas minha mãe nunca me levava para o programa de rádio da época, que era justamente no local do Teatro Carlos Gomes, aquelas mesmas cadeiras de madeira. Aquilo me deixou muito fascinada. Fui embora daqui e quando eu cheguei lá em Belém, eu já fui com o sonho de querer ser artista. Eu queria ser artista”.
Na juventude, Chirley voltou para Belém, onde estudou artes cênicas e plásticas. Voltou à Roraima após formada, em 1981, e ficou surpresa ao ver que a rádio que a inspirou a cantar havia se transformado em um Teatro, o Carlos Gomes.
Mais que um Teatro, o Carlos Gomes foi um lar, segundo Chirley. Por mais que se apresentasse em diversos bares com a cena artística de Roraima, o “Teatro dos Artistas” era o principal palco de seus espetáculos.
“Quando eu cheguei aqui, os nossos palcos eram o Teatro Carlos Gomes e dois barzinhos que proporcionaram para a gente cantar. Todos os artistas se reuniam, se juntavam para mostrar seus trabalhos. Quando não era no Teatro, era nesses barzinhos que a gente se juntava. Todo mundo ia lá, só que não pagavam ninguém, a gente ia porque queria mostrar o nosso trabalho”.
Para ela, o que mais a encantava nos espetáculos feitos no Teatro Carlos Gomes era a abertura para novos artistas. Ela relata que qualquer um que tivesse vontade e algo para dizer, tinha espaço no Teatro.
“[O Teatro] era o nosso xodó e era bom porque não tinha burocracia como os outros teatros. Nunca, nenhum artista pagou iluminação ou som. Era simples, mas tinha espaço. Qualquer artista que você perguntar vai dizer que sente saudade daquele lugar, que aquilo ali não deveria nunca, nunca, ficar do atual jeito. Que fosse um Teatro simples, mas que era uma coisa nossa, gostosa e fácil das pessoas chegarem lá porque o terminal de ônibus fica perto de lá”.
Entre os espetáculos de Chirley do qual o “Teatro dos Artistas” foi palco, os que ela mais lembra com carinho estão o musical “Rosas”, de 1999, e a abertura para o violonista Sebastião Tapajos, descrito por ela como “o maior violonista da Amazônia”.
“Eu fiz a abertura de Sebastião Tapajos, um dos maiores artistas de violão, compositores da Amazônia, conhecido internacionalmente. Como ele é paraense e tinha contato com o pessoal do Roraimeira como o Zeca Preto. Então, por causa dessas amizades do Zeca Pedro com Nilson Chaves e Sebastião de Tapajos, eu sempre fazia a abertura e como ele era meu produtor musical, porque ele ainda não era cantor, não tinha se colocado como cantor apenas como poeta”.
Ela conta que o público sempre estava presente nos espetáculos do Teatro. Em conversas com outros artistas, a falta do Teatro Carlos Gomes é sentida por todos que ali já expuseram seus trabalhos culturais.
"Público nunca faltava para a gente. Eu sinto muito por não terem preservado um local que era nosso, que não tinha muita burocracia, que tinha som e iluminação própria, tinha as pessoas que trabalhavam lá com a manutenção dessas coisas e a gente nunca teve que pagar para iluminar a não ser uma taxa de manutenção, que claro que sim tinha que pagar. E até hoje eu sinto muita falta, não só eu, às vezes conversando com outras pessoas que já passaram por lá, a saudade que a gente sente”.
O sentimento para Chirley é de pesar ao ver as condições atuais do tão querido por ela Teatro Carlos Gomes. Ela descreve como “descaso com a cultura roraimense” a situação de abandono do antes conhecido como “Teatro dos Artistas”.
“Sinto com muito pesar, que o governo tenha abandonado um patrimônio simples, bonito, confortável e onde muitos artistas iniciaram. Artistas que hoje são conhecidos, os roraimeiras passaram lá não sei quantas vezes… porque o governo deixou isso acontecer com uma coisa que fazia parte da história da música, do Teatro e da arte de Boa Vista?”.
“Olha, para mim, é um grande descaso com a cultura de Roraima. Não somente com o Teatro Carlos Gomes, mas com outros prédios tombados e depois destruídos”, fala, com revolta, a artista.
MIR: de repente abandonado
A professora Kelly Renata, de 38 anos, guarda com carinho e afeto as lembranças de quando visitou o Museu Integrado de Roraima (MIR). O espaço foi inaugurado em 1985 e criado durante o governo de Arídio Martins de Magalhães.
Kelly não lembra ao certo a idade que tinha na época que foi ao MIR pela primeira vez, mas estava no ensino fundamental e em uma excursão da escola.
No museu, Kelly relembra que artes indígenas e pontos importantes da história natural de Roraima estavam expostos no lugar e o sentimento que tomou conta foi o encantamento. Atualmente, a realidade é diferente.
“Tinham muitos artefatos indígenas, na entrada eu lembro ter uma maquete do museu. Quando você entrava, tinha dois corredores, um à direita e outro à esquerda, que tinham inúmeras imagens de comunidades indígenas, de fotos antigas do estado… era muito encantador ver nosso estado com aquela ótica”, relembra a professora.
Ela conta que o que mais chamou sua atenção e do resto da turma que visitava o museu pela primeira vez, foram os animais empalhados. A fauna de Roraima, de acordo com Kelly, estava muito presente nas exposições.
“No museu também tinham amostras de animais silvestres, como cobras, de insetos… Eu fiquei bastante encantada com os animais silvestres, eu era criança e nunca tinha visto um de perto. É algo que guardo muito em minha mente até hoje”.
A professora relembra que o museu era movimentado com alunos em excursões das escolas e, nos finais de semana, servia como “programação da tarde”. Ela diz que ficou surpresa quando o local parou de funcionar, pois aconteceu “do nada”.
“Ele era, na época, muito visitado. Era bastante frequentado. Quando fechou, foi uma surpresa para muita gente, porque era programação de final de semana, sabe? Na época, tinha o museu e um jardim lá no Parque Anauá e era tudo junto. Então, o local era muito movimentado. É realmente uma pena ter sido abandonado”.
Kelly vê com lástima a atual situação de abandono do prédio em que funcionava o museu.
“Hoje eu vejo o museu abandonado, e vejo uma parte da história da cidade apagada… e sem contar que, visualmente falando, o prédio está feio até se olhar. Hoje está tudo abandonado, tudo quebrado. É perigoso até para quem vai no final de semana no parque”.
“Eu acho muito triste de verdade porque a história deve ser preservada de todas as formas. Nada deve ser esquecido, e o processo de abandono do museu representa um esquecimento”, confessa Kelly Renata.
O que mais entristece a professora é o fato de que, de acordo com ela, as futuras gerações não terão a mesma experiência encantadora de conhecer a história de Roraima como ela teve na escola. Kelly vê a situação do museu com pessimismo.
“Eu não acredito que futuras gerações vão visitar o local como eu visitei, a menos que realmente existam pessoas comprometidas em reabrir o museu. Eu fico triste pela falta de opções que hoje nossas crianças têm. Eu realmente não vejo num futuro próximo, infelizmente que possa acontecer uma restauração”.
‘Respeitar o patrimônio é respeitar a cidadania’
O arquiteto e urbanista roraimense Igor Tatagiba, pós-graduando em direito urbanístico e ambiental pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, vê o abandono do patrimônio cultural de Boa Vista como descaso. Para ele, os prédios – e a conservação deles – são o que formam uma cidade.
“As cidades são feitas de memórias, de povos que passaram e passam por ela, de culturas que as tornam cidades singulares. Os governos que passam pela administração das cidades são responsáveis por preservar, resguardar e advogar pela proteção dos signos de cada local”, destaca o urbanista.
Para ele, cada edificação abandonada representa uma parte da cidade e da história que não está sendo respeitada pelos governantes encarregados de conservar esse patrimônio.
“Algumas edificações contam e servem como marcadores do tempo, em Boa Vista, a Casa da Cultura, construída nos anos de 1940 tem a sua importância relacionada aos governos da época, e do momento em que o plano diretor estava sendo desenvolvido, o Teatro Carlos Gomes guarda a memória e a importância de ser o primeiro e único Teatro da cidade até o ano de 2017”.
Sobre o Museu Integrado de Roraima, Igor Tatagiba destaca o abandono também do conjunto arquitetônico de todo o Parque Anauá, onde o prédio do museu está localizado.
“Todas as edificações têm em comum a guarda do governo estadual, que possui um longo histórico de demolições de edifícios históricos da cidade, para depois substituí-los por projetos infundados e que nada dizem além de uma propaganda gratuita de governo”.
Para o arquiteto, a singularidade de Roraima se encontra na arte e na cultura, e a não conservação desses prédios representa um desrespeito ao que o estado tem de único em relação às outras unidades federativas do Brasil.
“Pensar no patrimônio histórico e respeitá-lo é também respeitar a cidadania. Patrimônios culturais imateriais ou não, fazem povos se colocarem como únicos e singulares num mundo plural e cada vez mais emerso de repetições e extremamente globalizado”.
“A cidade de Boa Vista possui muitos casos de abandono de sua história e apagamento de si mesma, e isso a torna cada vez mais hostil, cada vez mais distante de si mesma, criando um lugar de não pertencimento, de não importância. Um local onde a terra é ‘terra de ninguém’", finaliza o urbanista.
Abandono é enraizado no pensamento roraimense, afirma pesquisador
O pesquisador em Visualidades Amazônicas e professor mestre em História Social da Universidade Federal de Roraima (UFRR), Maurício Zouein, acredita que o abandono da cultura é algo enraizado no pensamento roraimense.
“Todos esses três lugares que representam de fato e de direito a história do Estado, a história do povo daqui, estão abandonados. O pior não é ser abandonado pela instituição governamental, o pior é ser abandonado pela sociedade, e a própria sociedade não se respeita. A própria sociedade não cultua a sua história”, salientou Zouein.
Para Maurício, o descaso com os patrimônios representa uma grande tristeza. Em sua análise, ele avalia que a situação é reflexo da falta de uma consciência crítica da sociedade e afirma que o esquecimento dos prédios culturais não possui apenas um único culpado.
“Não posso chegar e apontar um culpado. Eu penso que nessa história, não temos um culpado, mas também acredito que não existem inocentes. Todos nós temos uma parcela de responsabilidade com a história do lugar, com a cultura do lugar. Alguns têm uma responsabilidade maior, outros menor. Mas, todos nós temos uma parcela”, ressaltou.
Zouein afirma ter vivenciado os dias dourados dos três prédios. Para o MIR, doou diversos livros antes de sair do estado para cursar uma pós-graduação, mas quando voltou, soube que diversas obras do acervo doado foram furtadas.
No Teatro Carlos Gomes, atuou e dirigiu peças. “Você tinha encenações e Teatro, show de calouros, música, aquelas coisas de brincadeira de palco, muita gente gostava”.
No entanto, em 1990, Zouein explica que o interesse do público caminhou para o abandono. À época, uma comissão de artistas produziu uma carta em que pediam a reforma do local e proibiam a demolição do prédio histórico.
“A sociedade se mobilizou por meio dos seus agentes culturais para que aquele prédio não fosse derrubado, pois na época a Radiobrás queria demolir [o local] para fazer a sede da rádio, que hoje é a Rádio Roraima. E aí, o então governador Ottomar de Souza Pinto acatou o nosso desejo na época”, esclareceu Maurício.
A Casa da Cultura foi um dos espaços que Zouein mais visitou. Ele explica que o local não tinha identificação ou critérios para sediar um lugar cultural. A visitação era limitada e, por volta do ano de 2000, a casa já apresentava sinais de abandono o que, pouco tempo depois, gerou discussões sobre a reforma da propriedade.
“Houve uma certa discordância sobre quem poderia fazer a reforma daquele prédio. A problemática girava entre o governo estadual e o governo federal, já que [o local foi lar] do governador Ene Garcez, indicado pelo governo federal que também comprou [a casa]. A dúvida entre as instituições era sobre quem tinha o direito de mexer naquele prédio e eu não sei se já resolveram essa questão”.
“Mas, entre a dúvida de um e de outro, a edificação vai ficando mesmo é para os cupins e as baratas, né? E com elas a memória do estado também”, disse Maurício, que à época participou da discussão como representante da UFRR.
O que diz o governo de Roraima
A Secretaria de Infraestrutura informa que o prédio do Teatro Carlos Gomes está contemplado no pacote de reformas de espaços públicos.
Reforça que há uma emenda no valor de R$ 1,9 milhão da deputada federal Shéridan para a realização da reforma geral do prédio. O projeto de restauração encontra- se em fase de aprovação junto ao Governo Federal.
Ressalta que será feita a limpeza no local pela equipe da Secretaria de Infraestrutura.
Em relação à Casa de Cultura destaca-se que o projeto de engenharia está sendo realizado pela empresa Pas, e se encontra em fase 2, da identificação de danos (com pesquisa histórica, análise tipológica e arquitetônica e de estado de conservação).
Vale ressaltar que por ser um prédio instituído como patrimônio histórico do Estado e em fase de tombamento. Há uma série de estudos e regras que devem ser seguidas para então ser autorizado o início da obra.
O prédio do Museu Integrado de Roraima está interditado por meio de laudo do Corpo de Bombeiros desde a gestão passada, por medida de segurança, uma vez que a estrutura de madeira está comprometida pela ação do tempo e de vetores como cupins.
O acervo do Museu Integrado encontra-se acondicionado no Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural, em processo de catalogação para ser transferido para a Secretaria de Cultura e Turismo.
No Iater, professores, acadêmicos e pesquisadores que tenham interesse em desenvolver estudos e pesquisas podem acessar o acervo, de segunda a sexta-feira, no horário de expediente, das 7h30 às 13h30.
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