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MIGRAÇÃO VENEZUELANA - As histórias que os jornais não te contam sobre a crise

Bárbara Silva e Fernanda Mesquita

Foto: Nacho Doce/Reuters

A desordem vai além da política: é social, pessoal, mexeu com o íntimo das pessoas, mas as manchetes só retratam o caos que afeta o mundo.


Boa Vista, Roraima. Extremo Norte do Brasil. Único estado acima da linha do Equador. Fronteira com a Venezuela e Guiana Inglesa. De 2015 até hoje, mais de 100 mil venezuelanos cruzaram a fronteira, fugindo do caos que assombra o país vizinho.

Estadão

El País

Folha de São Paulo


A crise venezuelana tomou conta das mídias nacionais e internacionais nos últimos quatro anos. Há muito do que falar dentro desse eixo: economia, política, regime ditatorial, questões bélicas, Donald Trump x Nicolás Maduro, migração em massa, o risco de explosão demográfica, entre outras. As pautas são infinitas.


Mas e as vidas atingidas? Quem está falando sobre elas? São pauta também? O eixo social se perdeu no termo “migração em massa”, em números. O indivíduo venezuelano deixou de ser um para se tornar parte dos 100, 200 ou 300 que cruzaram a fronteira Venezuela-Brasil hoje. O um agora é apenas parte de um espetáculo de domínio e poder que ele nem mesmo escolheu participar.

Roraima viu o caos se aproximar?


Roraima está no topo do mapa, acima de todos os outros estados brasileiros. Boa Vista é uma das únicas capitais do país que foi planejada, inspirada nos ideais modernistas parisienses do conceito de “cidade jardim”. A cidade tem forma de leque e, por isso, as suas principais avenidas convergem para o Centro Cívico, onde estão a Assembleia Legislativa, o Tribunal de Justiça e o Palácio do Governo de Roraima.

Nós, roraimenses, vivemos isolados do restante do país. Ninguém nunca nos deu tanta atenção, a não ser para tentar nos diminuir: “Tem energia lá?” “E internet?” “Lá, as pessoas andam de barco ou cipó?” “Achei que em Roraima só havia índios”. É assim que o resto do país pensa a respeito da nossa atual “Buena Vista”, falta interesse em realmente nos conhecer.


No mundo, as crises são diversas. Há pessoas fugindo de todo tipo de situação. E Roraima, em silêncio, isolada. No Brasil, recebemos refugiados sim, mas só os que vêm do outro lado do oceano, por favor. Obrigada.


Enquanto isso, uma crise severa se instalava aqui ao lado da nossa maloca, há exatos 231 km de Roraima, BRASIL. E ninguém se deu ao trabalho de olhar pra nós, os isolados, prestes a ser consumidos por uma avalanche de pessoas, com a precisão de quem quer ajudar ou, pelo menos, com a curiosidade de ver como íamos nos virar.


O caos estava debaixo do nosso nariz, abraçando os vizinhos da casa ao lado enquanto o fogo se espalhava e, mesmo quente, fingimos não sentir o cheiro de fumaça. Até que uma faísca tocou nosso gramado seco e, quando percebemos, já era tarde demais. O fogo se alastrou pelo quintal e tomou conta da nossa casa. A falta de cuidado e de atenção trouxe mais de 100 mil venezuelanos de 2015 até o momento pra dentro do nosso lar, onde mal cabia o nosso próprio povo.

E sabe aquela Boa Vista linda e desenhada, inspirada na cidade luz? Então, o planejamento foi feito para durar 25 anos. A partir daí, com o crescimento do estado, teriam de ser feitos outros projetos – o que não aconteceu. Já não havia conforto, segurança e saúde de qualidade nem para os filhos da Terra.


Muita gente, pouco espaço. Muitos carros, poucos olhares trocados. Muita pressa, mas sempre sobrava tempo para um sorvete nas praças. Até que elas foram tomadas por gente desesperada por abrigo, por um lugar pra descansar o corpo. E foi assim que o sorvete derreteu, ficou pra depois.


Os boavistenses se esconderam, temerosos no lar que lhes estava sendo “roubado”. Ninguém se importou o suficiente pra olhar com compaixão para aquele tanto de gente amontoado nas praças, nos semáforos, na rodoviária. Ninguém quis ouvir as suas histórias, foram deixadas de lado. Só o que se queria era a tranquilidade, calma e conforto da nossa casa de volta.


Mas conforme o tempo passou e continuamos a reclamar do problema sem fazer nada a respeito com as nossas próprias mãos, sem agir como os seres humanos que somos, colocando a culpa nos políticos e pedindo que eles – e só eles – resolvessem o caos, a situação piorou.


Os nossos hospitais, que já não estavam lá uma maravilha, decaíram mais um pouco. A saúde subiu numa corda bamba e permanece até hoje. Em todo canto que passamos, há pessoas no sol, debaixo de chuva, dormindo em barracas, deitadas em papelões, completamente desprezadas e entregues ao relento.

Foto: Divulgação

E, embora toda essa confusão não seja nossa culpa, a gente não para pra refletir que também não é culpa deles. Ninguém escolheu participar de toda essa bagunça, mas cá estamos. Nós somos capazes de olhar essas pessoas com indiferença, como se não fossem como nós.

Eis a novidade: eles são. Gente como a gente. Iguaizinhos.


Talvez, nós nem seríamos capazes de enfrentar o que eles estão enfrentando. Fome dói. Frustração também. Perder uma vida construída e estabilizada é um castigo que deve doer na alma. Eles são como nós. Venezuelanos e brasileiros são seres humanos. Iguais. De carne e osso.


Mas quem é que conta a história deles? Quem se importa com um único indivíduo quando há pautas mais quentes por aí?


Hoje, temos escolas bilíngues em Boa Vista e isso há de ser vantajoso para brasileiros e venezuelanos. Mas ainda não somos um Estado que suporta esse aumento populacional tão grande e em tão pouco tempo. Ainda não somos os seres humanos que se importam uns com os outros.


O que já era pouco, agora é praticamente inexistente.

Comentários xenofóbicos chovem nas redes sociais à medida que a crise aumenta. Estamos há quase quatro anos nessa situação, mas não entendemos ainda que a culpa é minha, sua, do vizinho e de todos ao redor. As mídias se concentram no dinheiro, na política, na guerra iminente, mas nunca nas pessoas.


Não há preocupação com as vidas que foram devastadas, com os inocentes que perderam casa, emprego, família e trocaram à força uma vida estruturada pela casa desconhecida ao lado. Como lidamos com o povo que passou do dia para a noite a experimentar uma cultura e idioma completamente diferentes sem nenhuma estrutura, e não porque escolheram assim, mas porque não havia outra opção?


Morrer em casa sem o mínimo pra viver ou viver dependendo de mãos caridosas da casa vizinha?


A crise não é só política. É social, pessoal, mexeu com o íntimo das pessoas. E ninguém vê ou entende porque as manchetes só retratam o caos, o medo de uma guerra bélica e a desordem na política internacional que afeta o mundo inteiro. A crise não é só uma, ela gerou crises individuais em todos os sentidos em juízes e açougueiros, médicos e cabeleireiros que, ao vir para o Brasil, se tornaram ninguém.


Nada importante. Ninguém a quem se deva dar valor. O mundo interno e pessoal do indivíduo venezuelano não é levado em conta. Parece não ser importante.


Mas deixa eu te contar: a CRISE é muito mais do que você lê nos jornais.

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